Estudo sobre Lucas 7

Estudo sobre Lucas 7




O servo do centurião (7.1-10)

Um centurião envia uma mensagem por meio de um grupo de judeus responsáveis, pedindo que Jesus venha e cure seu escravo. Os judeus têm esse gentio em alta estima, especialmente em virtude de sua generosidade para com eles; Jesus se propõe a atender ao seu pedido. Já a caminho, Jesus se encontra com outra delegação, que traz a sugestão de que não precisa nem visitar a casa; uma palavra dele, assim crê o centurião, vai curar mesmo a distância. O centurião expressa o seu sentimento de indignidade e não quer importunar o mestre, pois está consciente de seu lugar como gentio e tem uma percepção aguçada da disciplina e do decoro hierárquicos. Jesus não somente pronuncia a palavra de cura, mas também elogia fortemente o requerente: Eu lhes digo que nem em Israel encontrei tamanha fé (v. 9).

Essa é a única narrativa, ausente em Marcos, que Mateus e Lucas têm em comum; o restante do material de Q contém exclusivamente ensino. Nesse incidente, o diálogo nas duas versões é praticamente idêntico, mesmo que as duas narrativas sejam muito diferentes, indicando, assim se sugere, que a versão Q continha somente diálogos.

O milagre tem diversas características em comum com a cura da filha da mulher siro-fenícia (Mc 7.24-30; Mt 15.21-28) que Lucas não registra. Em ambos, o requerente é um gentio, pai ou responsável pelo paciente; em ambos, as palavras apropriadas obtêm a cura na ausência do paciente.

v. 2. um centurião: Um oficial não-comissionado, provavelmente das forças de Herodes Antipas. o servo [...] a quem seu senhor estimava muito: Em Mt 8.5-13, o paciente é chamado pais (palavra grega assim pronunciada), que significava escravo ou filho. Em Lucas, ele é um escravo, embora no v. 7 seja novamente um pais. João tem uma história semelhante, em que o moço é “filho” (Jo 4.46) sem qualificativo. A expressão estimava muito significa “era precioso”, ou amado como filho ou “de valor” como escravo. A evidência não é conclusiva, mas tanto no caso de filho quanto de escravo o retrato é de alguém a quem o centurião era completamente dedicado, v. 5. ama a nossa nação e construiu a nossa sinagoga, Foram feitas tentativas de identificar essa sinagoga com a de Tell-Hum, o lugar famoso de Gafarnaum.

Muito trabalho arqueológico tem sido feito nesse sítio durante os últimos cem anos, e os resultados foram amplamente divulgados, e.g., na primeira das palestras de E. L. Sukenik em 1930 (“the Schweich Lectures”), Ancient Synagogues in Palestine and Greece (1934). Embora não se possa dizer com certeza que essa sinagoga específica foi erigida em tempo para ser a oferecida pelo centurião, E. M. Blaiklock diz: “a sinagoga escavada ali [i.e., em Tell-Hum] pelos alemães em 1904 provavelmente [é] o lugar de encontro mencionado por Lucas” (Out of the Earth, 1957, p. 20). O ponto de vista mais geral, no entanto, a localiza no século II, embora possa bem ter sido construída no lugar da sinagoga conhecida do nosso Senhor.

O filho da viúva (7.11-17)

Ao prosseguir para Naim seguido de uma grande multidão, nosso Senhor depara com um cortejo fúnebre. O luto da mãe viúva desse jovem que havia morrido suscita a compaixão do Senhor, como aconteceu evidentemente com muitas pessoas da vila. Ele faz parar o cortejo, traz o moço à vida e o devolve àquela que o pranteia. Ele é saudado como um grande profeta: Deus interveio em favor do seu povo!

Esse é um de três milagres de ressurreição realizados por Jesus nos Evangelhos, sendo os outros a ressurreição da filha de Jairo e a de Lázaro. É notável que em obras em que o aspecto miraculoso era tão importante o número de ocorrências fosse tão pequeno; a limitação é certamente um testemunho significativo a favor da confiabilidade do relato. Levantar os mortos era um dos sinais messiânicos cumpridos para os quais o nosso Senhor chamou a atenção (7.22).

A história automaticamente lembra os filhos que foram ressuscitados e devolvidos às suas mães por Elias (lRs 17) e Eliseu (2Rs 4). Aliás, a linguagem em que a história é contada em alguns lugares é na verdade citação do AT (e.g., v. 15; cf. lRs 17.23). Quando as pessoas aclamaram Jesus como um grande profeta (v. 16), sem dúvida quiseram dizer com isso que aí estava um novo Elias. W. R.

F. Browning (p. 84) diz: “Jesus, encontrando o cortejo, é tomado de compaixão. Não há menção aqui de fé, mas o incidente traz à memória os milagres de Elias e Eliseu registrados no AT. Naim, aliás, ficava próximo de um dos cenários daqueles milagres (Suném)”.

v. 13. Pela primeira vez na sua narrativa, Lucas fala de Jesus como o Senhor, especialmente apropriado nesse contexto em que ele exerce o poder até sobre a morte.

A pergunta de João Batista (7.18-35)

Da prisão em que está encarcerado, João Batista envia mensageiros para fazerem a Jesus uma pergunta franca que o deixa perplexo: Jesus é de fato o Messias? Gomo resposta, Jesus não faz afirmação alguma, mas aponta para os seus milagres, que são sinais messiânicos profetizados no AT; ele passa, então, a honrar a grandeza de João.

v. 29, 30. Esses dois versículos não aparecem em Mateus nesse ponto, embora o sentimento que eles expressam ocorra de forma paralela em Mt 21.31. Em algumas versões (NIV e RSV em inglês), eles são colocados entre parênteses. Todo o povo, até os publicanos, ouvindo as palavras de Jesus, reconheceram que o caminho de Deus era justo, sendo batizados por João. Mas os fariseus e os peritos na lei rejeitaram o propósito de Deus: Eles “frustraram” (nr. da VA) o propósito de Deus. Essas atitudes contrastantes são associadas por Lucas com o batismo de João; em 3.12, ele registra a preocupação e o batismo dos cobradores de impostos, mas não faz menção dos fariseus. Cf. Mt 3.7. V. comentário dessa seção muito importante em Mt 11.2-19.

Jesus é ungido (7.36-50)

Jesus aceita o convite de um tal Simão, um fariseu, para uma refeição, durante a qual uma mulher da rua entra e expressa sua gratidão a Jesus ao molhar os pés dele com suas lágrimas, enxugá-los com seus cabelos e, ainda, ungi-los com o perfume de um frasco caro que ela havia trazido. O seu anfitrião fica bastante surpreso diante do fato de que Jesus tolera essa expressão de emoções procedente de uma fonte tão manchada; Jesus, com uma parábola acerca de dois devedores, mostra que, na profundidade do seu amor e devoção, ela demonstrou ser consideravelmente superior a Simão.

Há tentativas de identificar esse incidente com a unção realizada por Maria de Betânia durante a semana da Páscoa (Mt 26.6; Mc 14.3; Jo 12.3), mas é difícil reconhecer nessa penitente sem nome a Maria com cuja personalidade Lucas estava, na verdade, familiarizado (Lc 10.39,42). Parece bem claro que houve de fato dois incidentes desse tipo; há muitas diferenças entre a história de Lucas, por um lado, e os outros três evangelhos, por outro. Pode-se ver que os relatos de Mateus/Marcos e de João concordam em muitos detalhes em contraste com Lucas. Aliás, o único ponto importante em que um dos outros toma o partido de Lucas é no nome do anfitrião; Lucas e Mateus/Marcos o chamam de Simão. Mas Simão era um nome tão comum que na realidade nada se pode dizer acerca de sua dupla aparição aqui.

v. 37. certa mulher daquela cidade, uma pecadora. Ela não tem nome no relato ou por causa do tato e da discrição de Lucas, ou simplesmente porque ele não sabia o nome dela. v. 39. Simão é o típico fariseu, absolutamente seguro do que a Lei exige dele e completamente incapaz de discernir que há circunstâncias em que a lei do amor — “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” — transcende as minúcias das observâncias e regulamentos prescritos. Assim, ele atribui o fato de Jesus não denunciar a mulher por aquilo que ela é a um defeito no discernimento espiritual dele. O ponto importante da parábola dos dois devedores é que não é a ação da mulher que a torna merecedora do perdão; antes, é a devoção espontânea de alguém que está consciente de já ter sido perdoado (v. 47). Como diz Geldenhuys (p. 236), a parábola ensina que “a remissão de dívidas produz grande amor, e não vice-versa”.