Estudo sobre Lucas 10

Estudo sobre Lucas 10






A missão dos Setenta (10.1-24)

Setenta discípulos, mencionados somente por Lucas, são enviados com uma comissão em termos bem semelhantes à dos Doze em 9.1-10 (v. comentário ad loc.). Eles retornam e relatam entusiasticamente o sucesso de sua missão; Jesus os adverte do perigo do orgulho tomando conta do seu coração. Segue o registro da oração do Filho ao Pai, quase joanina em sua linguagem.

v. 1. setenta e dois. A evidência dos manuscritos está dividida entre 70 e 72. O segundo número sugeriria seis de cada tribo, como os tradutores da Septuaginta. Por outro lado, havia tradicionalmente 70 nações (Gn 10), 70 anciãos foram apontados por Moisés (Nm 11.16,17), e havia 70 membros no Sinédrio. dois a dois'. A. R. G. Leaney (p. 176) sugere que isso pode ser uma ilustração do princípio da testemunha de Dt 19.15. 

v. 2,3. colheita é grande.... Duas breves analogias introduzem a recomendação de Jesus aos Setenta; a colheita rica e os cordeiros entre os lobos. Em Mateus, ambos estão associados ao envio dos Doze (9.37,38; 10.16).

v. 4-12. Instruções para a viagem. As ordens dadas a eles são semelhantes às que os Doze receberam (9.3ss; cf. Mc 6.8-11; Mt 10.9-14), com o acréscimo de (a) uma determinação para não saudarem ninguém no caminho (v. 4); como no caso de Geazi (2Rs 4.29), a tarefa deles é uma questão de vida ou morte, e não há tempo a perder em intercâmbios sociais; (b) uma denúncia contra as cidades da Galileia, Corazim, Betsaida e Cafarnaum, por sua surdez ao chamado de Deus para que se arrependessem. Corazim não é mencionada em nenhum outro lugar na Bíblia nem em Josefo, mas suas ruínas são visíveis aproximadamente a quatro quilômetros ao norte de Cafarnaum; a denúncia contra Cafamaum é colocada em termos semelhantes ao “cântico de escárnio” contra o rei da Babilónica em Is 14.13-15.

v. 16. Eles recebem a autoridade que pertence àquele que os enviou. E uma versão mais intensa de Mt 10.40.

v. 17-20. O retorno dos Setenta. Após o seu retomo, eles estavam cheios de entusiasmo diante das coisas maravilhosas que tinham sido capacitados a realizar: até os demônios se submetem a nós, em teu nome. Isso era até mais do que eles haviam esperado, pois tinham sido comissionados apenas a curar os doentes e proclamar o reino (v. 9). Na sua resposta, o Senhor os advertiu acerca do orgulho: Eu vi Satanás caindo do céu como relâmpago (v. 18). O verbo Eu vi está no tempo imperfeito (“Eu estava observando”); caindo está no aoristo (“caído”). Visto que esse dito lembra Is 14.12 — “Gomo você caiu dos céus, ó estrela da manhã, filho da alvorada!” — tem sido interpretado ao longo da história cristã como uma referência a uma queda cósmica de Satanás no passado remoto; assim, por exemplo, Gregório, o Grande, já interpretava no longínquo século VI. Mas Plummer (p. 278) diz: “O aoristo indica a coincidência entre o sucesso dos Setenta e a visão de Cristo da derrota de Satanás”. O reino veio, “o sucesso dos discípulos é considerado um símbolo e uma garantia da derrota completa de Satanás” (ibid.; v. tb. comentário de Ap 12.9). Não importa a interpretação que aceitemos, está bem evidente que Jesus ensinava de forma inequívoca que há um poder pessoal do mal.

A promessa renovada de poder (v. 19) lembra SI 91.13 e Dt 8.15; mas o verdadeiro motivo de gratidão é que os seus nomes estão escritos no registro do Reino de Deus (cf. Êx 32.32,33; SI 87.6; Hb 12.23; Ap 3.5;17.8 etc.).

v. 21, 22. cf. Mt 11.25-27. Nesses dois versículos, somos transportados do ambiente dos Evangelhos sinópticos diretamente para o clima do quarto evangelho; eles têm sido descritos como “esse trovão do céu joanino”. Mesmo assim, como diz Plummer (p. 282), “é impossível, com base em qualquer princípio de crítica, questionar sua autenticidade ou o seu direito de serem considerados pertencentes aos materiais mais antigos dos usados pelos evangelistas”.

Jesus, exultando no Espírito Santo: E expressão própria de Lucas, que não aparece na versão de Mateus, mas é semelhante à linguagem dos dois primeiros capítulos de Lucas. No v. 21, ele se alegra na perfeita intimidade que ele e seu Pai desfrutam um com o outro. A ideia do v. 21 é desenvolvida por Paulo no primeiro capítulo de 1 Coríntios.

v. 23, 24. A bem-aventurança relatada também por Mateus (13.16,17) ressalta que Jesus estava falando aos Doze, e não aos seus seguidores em geral. Aos apóstolos, foram confiados os desdobramentos graciosos da verdade que marcava o ensino do Senhor aos seus discípulos mais íntimos: eles testemunharam o cumprimento de coisas para as quais os profetas haviam olhado com ardente expectativa (cf. Hb 11.13; IPe 1.12).

A parábola do bom samaritano (10.25-37)

A característica mais marcante do relato de Lucas da grande jornada é a série de parábolas, incluindo diversas das mais notáveis registradas no NT, que não foram preservadas por nenhum dos outros evangelhos.

Entre essas, a principal é a do bom samaritano. Um jurista (perito na lei) pergunta ao Senhor quais são os grandes mandamentos, e talvez fique surpreso ao não ouvir nenhuma nova doutrina da última moda, mas uma reafirmação da lei tão honrada da Torá concernente ao amor a Deus e ao próximo. O jurista quer saber quem é o seu próximo, pergunta que evoca como resposta essa parábola e a exortação que vem com ela: Vá e faça o mesmo (v. 37).

O diálogo introdutório é, com frequência, considerado um paralelo de Mc 12.28-31, 34, mas na verdade a única conexão é a associação entre Dt 6.5 e Lv 19.18, e, se Wm. Manson (p. 131) estiver certo, é possível que “essa síntese de preceitos creditados ao perito na lei sugira que os pregadores da época, ao tentarem resumir a Lei em uma ou duas breves frases, tenham chegado a um acordo em torno dessa fórmula”. Os dois contextos são bem diferentes, e as atitudes dos dois inquiridores também. Em Marcos, a pergunta do escriba é puramente acadêmica; aqui, de todo modo, há um elemento prático.

v. 25. um perito na lei. A palavra grega nomikos é usada somente por Lucas entre os Sinópticos, com exceção de Mt 22.35, em que a palavra é omitida em vários manuscritos. Lucas, provavelmente, usa a palavra em preferência a “escriba” (gr. grammateus) como sendo mais inteligível aos seus leitores gentios. levantou-se para pôr Jesus à prova: A intenção do jurista era inquirir ou preparar uma armadilha? Leaney (p. 182) sugere “testar” para transmitir o significado exato do verbo. A pergunta, diz Plummer (p. 284), não foi “preparada para colocar Jesus em apuros, mas, antes, testar sua habilidade como mestre [...] não significa uma tentativa sinistra de pegá-lo numa armadilha”. Moorman (p. 126), por outro lado, argumenta que, “ao fazer uma pergunta complicada, ele queria que Jesus tropeçasse nela para que, então, ele pudesse se voltar à multidão e ressaltar que era muito melhor deixar questões desse tipo para os peritos e competentes expositores da lei”. Wm. Manson, Browning e outros defendem uma posição semelhante.

v. 29. querendo justificar-se: i.e., tentando recuperar-se da humilhação sofrida. 

v. 30. Um homem descia de Jerusalém para Jerico: Com frequência, se faz a pergunta se as parábolas narrativas são registros de eventos que de fato ocorreram ou histórias imaginadas. Com relação a essa história, os estudiosos sugerem que Jesus estava contando um incidente da sua própria experiência que não foi registrado em outro lugar; isso é, sem dúvida, pura conjectura. Mas a história tem traços de realidade; ladrões têm infestado a estrada de Jerico desde aqueles dias até hoje. H. V. Morton conta que, quando disse a um amigo que queria descer ao mar Morto por um dia, ouviu a advertência: “Mas volte antes do anoitecer”, além de detalhes horríveis acerca de Abu Jildah, um bandido armado que em 1934 aterrorizava viajantes naquela mesma estrada (In the Steps of the Master, 1934, p. 85). Outra sugestão é que a parábola está fundamentada num evento histórico narrado em 2Cr 28.15. descia [...] para Jerico: Jerico tem uma longa história no AT; fica aproximadamente a 300 metros abaixo do nível do mar; Jerusalém está aproximadamente a 800 metros acima do nível do mar; por isso, descia, v. 31. um sacerdote [...] Quando viu o homem, passou pelo outro lado: Ele estava descendo pela mesma estrada; também vinha de Jerusalém. Se, como parece provável, estava vindo do cumprimento de suas obrigações sacerdotais, naturalmente tentaria evitar contato com um possível cadáver por medo de incorrer em impureza cerimonial (Nm 19.11-19). Mas a compaixão humana comum é uma lei mais elevada do que a observância de qualquer obrigação ritual (cf. ISm 15.22; Is 1.11-17; Am 5.21-24; Mc 2.25,26 etc.) 

v. 32. assim também um levita [...] chegou ao lugar e o viu: Um oficial subalterno do templo, o levita parece ter sido tão insensível quanto o seu superior, pois também se aproximou, viu e passou pelo outro lado. E possível, sem dúvida, que os dois fizeram isso porque eram covardes, e não porque fossem insensíveis. “Era uma coisa bem comum os bandidos usarem chamarizes [...] Quando um viajante que não suspeitava de nada passava e se debruçava sobre a aparente vítima, o restante do bando surgia repentinamente do seu esconderijo e pegava o viajante em total desvantagem” (W. Barclay, And Jesus Said, 1953, p. 95). 

v. 33. um samaritano, Um desenlace surpreendente da história; “os ouvintes esperavam que nesse momento o vilão da história surgisse no cenário” (ibid.). O sacerdote e o levita tinham negligenciado a tarefa para com o seu próximo; o desprezado samaritano fez o que ninguém poderia ter esperado em sã consciência que ele fizesse — uma lição muito salutar para João e Tiago! 

v. 35. dois denários: Mt 20.2 nos diz que o denário era o salário diário de um trabalhador na agricultura.

v. 36, 37. O significado da parábola. Interpretações alegorizantes e fantasiosas como as de Orígenes e Agostinho (v. A. M. Hunter, Interpreting the Parables, 1960, p. 245, e C. H. Dodd, Parables of tke Kingdom, 1935, p. 11ss) chamam tanto a atenção para as folhas que a árvore em si fica obscurecida. O importante não é tentar identificar cada minúsculo detalhe da história, mas entender como Jesus, ao mesmo tempo que pintou um magnífico retrato de como se trata o próximo, ou do amor em ação, também fez o jurista entender o desafio da Lei, na qual ele era perito, ao seu próprio coração, para condicionar o seu pensamento e inspirar e ajustar as suas ações.

Maria e Marta (10.38-42)

A parábola do bom samaritano destaca a necessidade de aplicação prática da palavra de Deus; a breve cena na casa de Marta mostra que a meditação também tem o seu lugar. Enquanto Marta resolve as tarefas da casa, sua irmã Maria está sentada aos pés de Jesus. Marta se sente sobrecarregada e se queixa; Jesus meigamente sugere que ela poderia ter feito o mesmo, em vez de tornar o trabalho de casa um peso tão grande. Esse incidente é especialmente interessante pelo fato de que Marta e Maria, bem conhecidas nas páginas de João, só aparecem aqui nos Sinópticos. 

v. 38. um povoado: Lucas não cita o nome desse povoado, que deve ter sido Betânia, embora alguns achem que esse ponto de vista suscite dificuldades geográficas. Se o incidente ocorreu durante a visita de Jesus a Jerusalém para a festa das cabanas (Jo 7), explicaria a sua presença em Betânia nessa época. 

v. 40. Marta [...] estava ocupada: Tão ocupada, na verdade, que não somente se ressentiu com a evidente preguiça da irmã, mas até censurou Jesus por não mandar Maria ajudá-la. 

v. 41,42. Jesus responde de forma amável; o duplo vocativo: Marta! Marta! é uma forma meiga de se dirigir a ela. Ele destaca que, se ela está sobrecarregada, é porque ela mesma criou a labuta, apenas uma [coisa] é necessária-, Um simples prato teria sido suficiente; Marta se empenhou em transtornos desnecessários para preparar um banquete, esquecendo Pv 15.16,17! Maria escolheu a boa parte-. Observe com que tato o Senhor, enquanto elogia Maria por seus valores, não condena Marta por comparação; Maria escolheu a boa parte, e não a melhor.