Estudo sobre Lucas 12

Estudo sobre Lucas 12




Ensinos públicos (12.1-59)

O tom solene acerca da controvérsia com os fariseus tem continuação em todo o cap. 12, em que o nosso Senhor se volta para os seus seguidores e pronuncia uma série de advertências que eles precisam respeitar. Em primeiro lugar, ele os orienta a se preparar para a perseguição que certamente os espera (v. 1-12). Em seguida, adverte-os acerca da avareza, a valorização excessiva dos bens materiais, e reforça a advertência com a parábola solene do rico insensato (v. 13-21). Segue, então, uma seção, que em Mateus é colocada no Sermão do Monte, em que ele mostra aos discípulos a inutilidade e a tolice da ansiedade por necessidades temporais (v. 22-34). Finalmente, quase toda a segunda metade do capítulo (v. 35-59) é de orientação escatológica, advertindo acerca do momento decisivo que certamente está à espera deles.

(1) Advertência acerca de perseguições vindouras (12.1-12)

A cena é retratada vividamente, uma das obras-primas de narrativa simples, porém marcante, tantas vezes usada para realçar suas descrições do alvoroço e do humor variável da multidão na rua. Jesus deixou o fariseu com quem havia debatido, mas eles não o queriam deixar sair facilmente; eles começaram a opor-se fortemente a ele e a interrogá-lo com muitas perguntas, esperando apanhá-lo em algo que dissesse (11.53,54). Mas como em outras ocasiões, especialmente na sua crucificação, é o Senhor — e não eles —, a figura solitária — e não os líderes da religião estabelecida —, que está claramente no controle dos eventos, tendo-se juntado uma multidão de milhares de pessoas (12.1): Para ouvi-lo. Nem um bocado intimidado pelas forças hostis a ele, Jesus retoma o ataque: Tenham cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia. Essa expressão é interessante, visto que ocorre em Mc 8.15 em outro contexto, imediatamente antes da Grande Confissão em Cesareia de Filipe. Aliás, muitas expressões desse capítulo encontram seu paralelo em contextos diferentes em Mateus e Marcos; em Mateus, principalmente no Sermão do Monte (caps. 5—7), na escolha dos Doze (cap. 10) ou no discurso escatológico no cap. 24.

v. 1. O seu destemor não tem nada de mero e cego desafio. Seus olhos estão bem abertos, e ele sabe muito bem que os fariseus vão voltar ao ataque; e, se seus discípulos se posicionarem do lado dele, a perseguição será o seu destino, assim como certamente será o dele. v. 2,3. Um dia, tudo vai ser revelado; mas entrementes, na espera por aquele Dia, ”as confissões hesitantes e tímidas dos discípulos precisam se tornar triunfantes e públicas, mesmo que tragam perseguições” (Browning, p. 119). v. 4,5. Essa é a única vez que Jesus chama os discípulos de amigos (embora cf. Jo 15.14,15). A perseguição humana deve ser menos temida do que o juízo de Deus ou a apostasia, inferno: Geena é o vale dos filhos de Hinom, que se estende por um longo trecho ao lado do muro a oeste e sul de Jerusalém. Ali haviam sido feitos sacrifícios de crianças a Moloque (Jr 7.31,32); nos dias do nosso Senhor, era o perpétuo e fumegante incinerador, infestado de vermes, do lixo e do esgoto da cidade. As horríveis associações que trazia à memória e suas condições abomináveis o tornavam um símbolo adequado dos sofrimentos dos perdidos, v. 6,7. Mas o Juiz que deve ser temido é também um Pai em quem se pode confiar. Ele cuida dos pardais e, mais ainda, de cada cabelo sobre nossa cabeça; em maior medida, não cuidaria dos próprios filhos? v. 8-12. A lealdade a Deus nunca pode permanecer uma idéia abstrata; Jesus é ele mesmo o objeto dela. Disso seguem três corolários:

(a) A promessa de que, se o confessarmos agora, ele vai nos confessar diante do seu Pai, e a advertência de que o contrário também é verdade (isso é apresentado por Mc 8.38, como uma espécie de apêndice da cena de Cesareia de Filipe).

(b) A dificílima advertência acerca da blasfêmia contra o Espírito Santo: Todo aquele que disser uma palavra contra o Filho do homem será perdoado, mas quem blasfemar contra o Espirito Santo não será perdoado (v. 10; cf. Mc 3.28,29; Mt 12.31,32). Tanto Mateus quanto Marcos colocam o dito no contexto da controvérsia de Belzebu (v. antes, 11.14-26). V. comentário nos textos paralelos de Mateus e Marcos.

(c) A promessa de que na perseguição eles vão ser sustentados e capacitados pelo próprio Espírito Santo (v. 11,12; v. Mt 10.19, 20; Mc 13.11; também no discurso apocalíptico de Lucas, 21.14,15). Lucas especialmente mostra grande interesse nessa promessa, cujo cumprimento ele tem de descrever mais tarde em muitos incidentes em Atos.

(2) Advertência contra a cobiça: a parábola do rico insensato (12.13-21)

Esse discurso foi bruscamente interrompido por Alguém da multidão (v. 13), que pediu a Jesus que interviesse numa disputa familiar relacionada à partilha da herança. Pede-se àquele que é maior que Salomão (11.31) que julgue a divisão não de um bebê, mas de uma herança, e não para agir como árbitro independente nessa situação, mas para atender os desejos de uma parte na disputa. Mestre, dize a meu irmão que divida a herança comigo (v. 13). Mas ele não vai solucionar as dificuldades que levaram Moisés a situações problemáticas quando tentou tratá-las (v. 14; cf. Ex 2.14); sua missão não era resolver as diferenças que irmãos, co-herdeiros acima de tudo da aliança, tinham de resolver facilmente entre si. Os grandes rabinos, com frequência, agiam dessa forma, mas Jesus não agiria como um grande rabino.

Em vez da resposta que ele esperava, o requerente ouviu a história do rico insensato (v. 16-20). Jeremias havia dito acerca das riquezas dos ricos que “Quando a metade da sua vida tiver passado, elas o abandonarão, e, no final, ele se revelará um tolo” (Jr 17.11b); temos aqui um comentário eloquente do texto. Um fazendeiro próspero está tão satisfeito com o produto dos seus campos que ele se propõe a se aposentar e levar uma vida mais fácil, depois de resolver o seu único e grande problema, o da falta de depósitos. Mas se é o homem que faz planos, Deus é que conduz a sua vida. Naquela noite, nem toda a sua riqueza pode evitar que o anjo da morte entre pela sua porta. Ele ouve a voz do próprio Deus marcá-lo com o apelido de Jeremias: Insensato! (v. 20). Ele precisa deixar suas riquezas para trás; de quem serão? Essas eram questões que, com frequência, ocupavam a mente dos autores do AT; v. por exemplo, Jó 27.8; SI 39.6 etc. O v. 21 dá a “moral da história”, a chave para a compreensão da parábola.

Advertência contra a ansiedade e as preocupações do mundo (12.22-34)

Cf. Mt 6.25-34. Esses versículos estão quase que totalmente em concordância verbal estreita com a versão de Mateus do Sermão do Monte (v. comentário ad loc.), exceto por alguns pequenos acréscimos.
v. 32. O pequeno rebanho é constituído somente de ovelhas enviadas para o meio de lobos, mas a boa vontade do Pai que lhes dá o reino certamente não vai deixar que lhes falte a proteção de que vão precisar, v. 33. Vendam o que têm e deem esmolas'. Lucas, sempre prático, sugere como eles podem começar a depositar o seu tesouro no céu. v. 34. Se sabemos que temos um tesouro no céu, a necessidade de ajuntar tesouros terrenos desaparece.

Advertência acerca de crises vindouras (12.35-59)

O restante do capítulo é tomado pelo primeiro grande trecho escatológico de Lucas; os homens são exortados a se arrepender enquanto ainda há tempo. A ênfase está na subitaneidade da crise e seu consequente chamado a que estejam alerta e vigilantes. Além disso, o tempo presente é um tempo de crise, lançando suas sombras sobre os discípulos, o próprio Senhor e a nação de Israel, (a) A crise e os discípulos (12.35-48) v. 35-40. Eles são escravos que precisam estar sempre vigilantes, tanto para a volta inesperada do seu Senhor quanto para a possível intromissão de ladrões. Não há paralelo exato em Mateus, embora a parábola das dez virgens em Mt 25.1-13 desenvolva um tema semelhante. A insistência é pela vigilância: Estejam prontos para servir, e conservem acesas as suas candeias, como aqueles que esperam seu senhor voltar de um banquete de casamento; para que, quando ele chegar e bater, possam abrir-lhe a porta imediatamente (v. 35,36). O tempo em que seus serviços vão ser requisitados é desconhecido; eles não vão ver o retorno do seu Senhor. A primeira indicação de que ele está de volta vai ser uma batida na porta.

v. 37. A ideia de um senhor servir o seu escravo é bem revolucionária; um ato desses seria bem inesperado (v. 17.7-10). Mas Jesus ”colocou uma toalha em volta da cintura” para servi-los (Jo 13.4); alguns comentaristas (e.g., Balmforth, p. 222) veem uma referência também ao banquete messiânico, v. 39, 40. Cf. Mt 24.43, 44.

v. 41-48. Esses servos, além disso, têm, cada um, a sua tarefa designada a cumprir (cf. Mt 24.45-51). O v. 41 não está no paralelo de Mateus, que no mais é muito semelhante. A pergunta de Pedro se Jesus estava falando à multidão ou aos discípulos leva à ênfase especial na ideia de que o privilégio superior traz consigo responsabilidade maior. Os v. 47,48 fazem uma clara distinção entre a insensatez e a rebeldia. O servo que sabe o que se espera dele e não o faz vai ser punido muito mais severamente do que o que é simplesmente descuidado de forma geral. São os Doze que Jesus tem instruído cuidadosamente desde o chamado deles e que, por isso, deveriam saber a sua vontade. A lição da parábola do administrador fiel e sensato (v. 42) é a seguinte: A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido (v. 48).

A crise e o nosso Senhor (12.49-53)

Nesses poucos versículos de profundas verdades espirituais, o evangelista mostra que a agonia no Getsêmani era somente o clímax de uma longa experiência de encarar as coisas tenebrosas que ainda estavam adiante dele; cf Jo 12.27.

v. 50. O batismo mencionado aqui é sem dúvida aquele que João e Tiago tão prontamente se declararam capazes de compartilhar (Mc 10.38,39). 

v. 51-53. O trecho trata dos efeitos decisivos da contenda de Cristo dentro da família, dos mal-entendidos e da alienação dos mais próximos e mais queridos que ele mesmo tinha sofrido em primeiro lugar (8.19-21, e até 2.49), tendo tudo isso sido predito no AT (Mq 7.6).

A crise e Israel (12.54-59)
Os v. 54-56 não têm paralelo em Mateus. George Adam Smith comenta acerca da exatidão geográfica do dito nos v. 54,55 (The Historical Geograpky of the Holy Land, 1931, p. 66). O estudo do clima é de importância fundamental ao agricultor que quer estar preparado para o que vier; por que não se mostra essa mesma perspicácia em termos espirituais?

v. 56. Hipócritas! Um nome usado para os fariseus em Lucas somente aqui e em 13.15; mas ao menos 12 vezes em Mateus. O hipócrita é originariamente um ator de teatro, alguém fazendo de conta que é o que na realidade não é. No início, a palavra não tinha conotação pejorativa alguma no grego, embora já o tivesse passado a ter na LXX. Acerca do significado da palavra, v. Wm. Barclay, A New Testament Wordbook (1955), p. 56ss; acerca dos fariseus, v. o verbete “Fariseus” de H. L. Ellison no NBD.

v. 57-59. A parábola do processo judicial. Em Mateus (5.25,26), essa parábola está no Sermão do Monte. V. comentário ad loc.

O ministério na Peréia (13.1—17.10)

Esse título, dado comumente a essa seção no evangelho, é usado aqui por conveniência. Ele pressupõe que a viagem para Jerusalém tomou um caminho mais longo, a leste do Jordão, supostamente para evitar a má vontade dos samaritanos. Mc 10.1 diz que Jesus “saiu dali e foi para a região da Judéia e para o outro lado do Jordão”, e tem sido sugerido que Lucas está dando os detalhes aqui para preencher o resumo. Essa leitura das indicações geográficas, no entanto, de forma alguma é universalmente aceita. N. B. Stonehouse (p. 116-7), discutindo o problema, conclui: “Parece, então, que é claramente uma designação incorreta falar dessa seção como do ‘Ministério na Peréia’ “. Ele diz que 17.11 indica que o nosso Senhor ainda está somente tão distante quanto a divisa de Samaria com a Judéia, de modo que a maioria dos eventos de 13.1—17.10 precisa ser localizada na Galileia. Mas, não importa a localização, a face do nosso Senhor está sempre voltada para Jerusalém (13.22,23).