Estudo sobre Hebreus 2

Estudo sobre Hebreus 2



II. O PROGRAMA DE DEUS PARA A SALVAÇÃO (2.1-18)

Advertência e exortação (2.1-4)

Antes de desenvolver o tema da salvação, o autor se sente impelido a parar e fazer uma advertência com base nas implicações da sua teologia exegética. Isso está em harmonia com o seu método de intercalar exortações com teologia. Essas “digressões” não devem ser consideradas um desvio que o autor faz do seu propósito principal. Antes, ele está desvelando o seu propósito principal por meio delas (cf. 13.22).

A advertência aqui pode ser a chave para a compreensão da dificuldade enfrentada por aqueles que em primeira instância receberam a carta de Hebreus. Aparentemente é uma advertência contra a negligência e a indiferença à nova revelação, contra a falha em apreciá-la e um estímulo para aproveitar todos os seus benefícios, além de ser uma advertência contra a possibilidade de nos desviarmos (v. 1). A solução do problema é o exercício moral: é preciso que prestemos maior atenção ao que temos ouvido (v. 1), o que sugere responsabilidade pessoal na aplicação da mente à nova revelação de maneira tão extraordinária a ponto de obedecer a ela completamente.

O motivo dessa exortação deve ser encontrado na natureza dessa nova revelação. A mensagem anterior foi transmitida por anjos (v. 2), e cada pecado de ação e omissão transgressão e desobediência) foi adequadamente castigado. Mas a nova mensagem de salvação foi anunciada pelo Senhor (v. 3), que se mostrou incomparavelmente superior aos anjos. Sua mensagem, portanto, é igualmente superior àquela mediada por eles, e a negligência dela tanto mais culpável. Nunca foi afirmado explicitamente no AT que a lei foi transmitida por anjos, somente sugerido (cf. Dt 33.2, LXX, e Sl 68.17, LXX), não obstante era um axioma do judaísmo (v. Josefo, Ant. 15,5.3) e uma crença da Igreja (cf. At 7.53 e G1 3.19).

Visto que a nova revelação trazida pelo Filho foi-nos confirmada pelos que a ouviram (v. 3), temos a certeza de uma tradição fiel em que podemos ter total confiança. A expressão “foi-nos confirmada” traduz o grego bebaioõ com o significado de “tornar firme”, ”estabelecer”, “confirmar”. Goodspeed assim expressa mais claramente a ideia contida aqui, quando traduz: “foi garantida”. Aqui também está a pista de que o autor se considerava um dos que receberam sua “tradição autêntica” de segunda mão daqueles que tinham realmente ouvido o Salvador.

O v. 4 serve a dois propósitos: (a) mostrar o lugar e propósito dos milagres, isto é, estabelecer a autenticidade da mensagem do NT (Deus “acrescentou o seu testemunho” em milagre para mostrar que ela contava com sanção divina) e (b) “para ressaltar a tremenda autoridade das ‘coisas que foram ouvidas’” (F. D. V. Narborough, The Epistle to the Hebrews, 1930, p. 86). Essa mensagem não foi somente falada pelo Senhor, mas visivelmente aprovada por Deus e por dons carismáticos do Espírito Santo. Pai, Filho e Espírito Santo assim cooperaram para produzir essa revelação de salvação. Desviar-se dela ou tratá-la com indiferença é a maior das tolices.

O resumo da salvação (2.5-18)

A primeira seção (v. 5-9), que esboça a necessidade da salvação e os meios pelos quais ela é atingida, se torna mais inteligível se é conectada com 1.14. Anjos são enviados para servir aqueles que hão de herdar a salvação (1.14); Não foi a anjos que ele sujeitou o mundo que há de vir (2.5). Nessas palavras, o autor está dizendo que apesar do que pode ter sido uma política de ação temporária [Observação: acreditava-se que tanto os anjos (Dt 32.8, LXX; Dn 10.13; 12.1) como as estrelas e os planetas (l Enoque 60.15-21; 18.13-16; Jubileus 2.2) governavam as pessoas], não era o propósito de Deus dar aos anjos soberania sobre seu “sistema moral, organizado” (gr. oikumene, Westcott, Comm., p. 42). Essa soberania, ele reservou somente para o homem, como mostra tão claramente o uso de SI 8 (observe a forma casual em que ele introduz sua citação, lit. “alguém testemunhou em algum lugar”, sugerindo que para o autor de Flebreus a ferramenta é insignificante; na verdade, foi Deus quem falou): Tu [...] o coroaste (o homem, o filho do homem) de glória e de honra; tudo sujeitaste debaixo dos seus pés (v. 7b,8). Isto então é o ideal divino (cf. Gn 1.26 28): o homem deve governar; o filho do homem que foi feito somente “por um pouco [...] menor do que Deus” (SI 8.5, ARA) foi destinado a ser soberano, e nada deve existir que não esteja debaixo dos seus pés (v. 8). E nesse ponto, no entanto, que a necessidade de salvação se torna completamente clara, pois não vemos que todas as coisas estão sujeitas ao homem (v. 8b). O alvo de Deus para o homem não está sendo atingido.

Contudo, os propósitos divinos não podem ser frustrados. O v. 9 revela que Deus proveu o meio para a salvação. Ele encontrou um caminho de trazer o homem de volta ao seu lugar de soberania: Jesus, aquele que por um pouco foi feito menor do que os anjos, é agora coroado de honra e de glória. [Observação: Aqui pela primeira vez temos a menção do nome “Jesus”. E uma designação favorita, usada 13 vezes pelo autor de Hebreus em sua carta.]

No presente argumento do autor, a expressão “feito menor do que os anjos”, significa, provavelmente, pouco mais do que o Eterno se tornou humano, pois se deve perceber que essa expressão foi tomada por empréstimo de Sl. 8 (citado anteriormente), e é o único que diz alguma coisa acerca da natureza do homem. Por isso, quando o autor de Hebreus afirma que Jesus foi feito menor do que os anjos, ele está simplesmente dizendo, por meio da fraseologia bíblica, que o Filho de Deus se tornou encarnado como homem, que ele assumiu a posição de homem. Mas essa é uma declaração tremendamente importante, mesmo assim, pois no seu pensamento foi somente nesse ato de auto-identificação com a raça humana que pela graça de Deus ele foi capacitado para que experimentasse a morte (v. 9).

A ideia prevalecente da “solidariedade corporativa” estava, sem dúvida, na mente do autor quando ele formulou a declaração anterior: os redimidos juntos com o Redentor “constituem uma unidade, e essa unidade é concebida em termos de substância: eles e ele pertencem a um corpo [...]. O que acontece com o Redentor, ou aconteceu enquanto ele permaneceu em forma humana na terra, acontece com todo o seu corpo, i.e., não somente a ele, mas a todos que pertencem a esse corpo. Assim, se ele sofreu a morte, o mesmo é verdadeiro acerca deles (2Co 5.14). Se ele foi ressuscitado dentre os mortos, o mesmo se aplica a eles (I Co 15.20-22)” (cf. Rm 5.12,18,19; I Co 15.45,46; R. Bultmann, Theology of the New Testament, 1951, v. 1, p. 299).

Com base nisso, fica claro agora que, quando o autor prossegue e diz que Jesus foi coroado de honra e de glória (v. 9), ele entende que esse evento foi muito mais amplo do que a exaltação da personalidade singular de Jesus. Pois, se é verdade que Jesus foi exaltado ao posto de soberania, também é verdade que aqueles que estão unidos com ele em um corpo da mesma forma compartilham dessa exaltação. Assim é que a salvação é completada, pois o que o homem não tinha sido capaz de atingir, ou seja, o seu destino divinamente apontado de ser soberano, Jesus atingiu, e o homem por meio dele também.

Mais duas coisas devem ser mencionadas: Em primeiro lugar, pouco importa se a expressão grega brachy ti é traduzida para mostrar graus, i.e., “um pouco menor que os anjos” (NVI), ou para mostrar tempo, i.e., ”por um pouco” (ARA, para o que há apoio geral hoje), pois não acrescenta nada ao argumento principal do autor. Ele parece ter incluído isso principalmente porque era parte de uma citação de que precisava para mostrar que Cristo se tornou o que o homem era. Em segundo lugar, vale a pena chamar atenção especial para o fato de que para o autor a exaltação (incluindo também a do homem) ocorreu somente por causa do sofrimento e da morte de Jesus. Nada se diz do seu ensino como meio de salvação humana. Isso, sem dúvida, está em harmonia com a ênfase do autor no sacerdócio de Cristo e no seu auto-sacrifício pelo qual a expiação foi feita (cf. 9.14). Esta próxima seção (v. 10-18) reitera o grande conceito da identificação divina com o humano e busca oferecer razões de esse método de salvação ter sido usado por Deus.

A primeira razão é sugerida sem a prova costumeira das Escrituras, isto é, que esse método particular, que necessariamente envolveu o aperfeiçoamento do Salvador mediante o sofrimento (e morte), era conveniente para aquele por causa de quem e por meio de quem tudo existe (v. 10). E não somente é fato que esse método está em perfeita harmonia com a natureza de Deus, mas essa descrição dele como a causa final e eficiente de todas as coisas revela mais duas verdades essenciais concernentes à salvação: (a) que o sofrimento do Redentor não foi acidental, mas estava em concordância com o plano geral da providência divina (Spicq, Comm., v. 1, ad loc.), e (b) que o próprio Deus é o grande iniciador desse processo redentor; é aquele que pôs em movimento todas as coisas que determinou levar muitos filhos à glória (essa sendo a frase-chave, denotando a essência da salvação, cf. v. 7b e 9b) ao aperfeiçoar o Salvador por meio do sofrimento. O verbo “aperfeiçoar” (gr. teleiouri) significa “concluir um processo”, e com seu uso o autor mostrou que Jesus se tornou perfeitamente qualificado a ser o pioneiro da salvação do homem por meio do processo do sofrimento humano.

No v. 11, é ressaltada novamente a auto-identificação do Filho com aqueles que ele veio redimir, sua completude e sua razão de ser: tanto o que santifica quanto os que são santificados provêm de um só, i.e., estão inextricavelmente ligados. Assim, visto que o sofrimento e a morte fazem parte de forma tão significativa da humanidade, era impossível que fosse diferente com o Filho que tinha de forma graciosa assumido para si essa mesma humanidade. Ao fazer uso do verbo ”santificar”, o autor não está comentando sobre o caráter moral dos que são santificados, pois é primeiramente um termo técnico que significa simplesmente “separar”. Foi usado com frequência para se referir a Israel (cf. Êx 19.14) que, por meio de sua santificação, foi separado como povo especial de Deus. Agora os que foram redimidos pela morte de Cristo recebem a mesma designação usada para o antigo Israel — um fato que pode significar que o autor entende que os cristãos são o novo povo de Deus.

Agora o autor se volta às Escrituras para buscar suas provas (v. 12,13). A identificação do Filho com a humanidade não foi uma reflexão tardia de Deus. Ele a tinha anunciado por meio da voz profética do salmista e do vidente: Proclamarei o teu nome a meus irmãos e: Nele porei a minha confiança, e finalmente: Aqui estou eu com os filhos que Deus me deu. Quão completa era essa identificação então? A resposta das Escrituras dada a essa pergunta é que ela era tão completa quanto a que existe entre irmãos, ou a que existe entre pai e filho. Era tão completa quanto a “comunhão de natureza” a podia tornar. A primeira dessas citações do AT vem do salmo 22, um salmo que anteriormente tinha sido usado pelo Senhor acerca de si mesmo enquanto ele estava na cruz (cf. Mt 27.46). Assim era fácil para o autor aplicar mais uma parte do mesmo salmo a ele aqui. As últimas duas citações são de Is 8.17,18 (LXX), e suas palavras originariamente davam expressão à fé pessoal do profeta em Deus e à sua convicção de que ele e seus filhos simbolizavam o remanescente fiel de Israel. Quando aplicadas a Cristo, elas revelam que, ao assumir a humanidade para si, exigiu-se dele viver dentro dessas limitações na completa dependência de Deus (cf. o comentário de 12.2), e que ele e seus “filhos” constituem a nova comunidade do povo fiel de Deus.

A salvação pela identificação não estava somente em harmonia com a natureza de Deus, mas também era necessária (v. 14-18). Pois, visto que os filhos são pessoas de carne e sangue (a ordem no gr., no entanto, é “sangue e carne”), vale dizer que, visto que eles são humanos, o Filho também exatamente da mesma maneira (gr. paraplêsiõs, “de forma absolutamente idêntica”) tinha de compartilhar dessa condição humana (v. 14) se ele queria chegar ao verdadeiro problema deles — a morte. [Observação: Os dois verbos usados nesse versículo (são e participou) representam dois verbos diferentes no grego, o primeiro ”marca a natureza comum compartilhada entre os homens enquanto a raça durar”; o segundo “expressa o fato singular da encarnação como aceitação voluntária da humanidade” (Westcott, Comm., p. 53).] Ao se tornar humano, o Filho Eterno se tornou suscetível à morte. Mas o grande paradoxo é que por meio da morte ele destruiu (lit. “tornou sem poder”) o Diabo que tem o poder da morte (cf. Sabedoria 2.24) e libertou de uma vez por todas aqueles que durante toda a vida estiveram escravizados pelo medo da morte (v. 14,15). O autor não deixa claro aqui como exatamente a morte de Cristo destruiu o poder do Diabo e libertou os homens do medo em que ele os escravizava, mas faz isso mais tarde. Então ele mostra que a morte de Cristo foi de tal natureza que libertou os homens da culpa dos seus pecados e sua consciência do pavor das suas consequências (cf. 9.14; 10.22).

O v. 16 é um resumo. Mostra que essa salvação é voltada para os homens, e não para os anjos. O termo ajuda traduz o verbo grego epilambanesthai, que significa “pegar” ou “tomar”. A ideia é que Deus com muita graça tomou os descendentes de Abraão, isto é, todos os que como Abraão têm fé em Deus (cf. G1 3.29), para conduzi-los da morte para a glória (cf. Jr 31.32 [38.22, LXX]; Is 41.8,9, LXX). Ele não fez isso para os anjos. O método que Deus preparou para realizar essa salvação é o sacerdotal, pois foi como sumo sacerdote misericordioso que Cristo deveria fazer propiciação pelos pecados do povo (v.17). “Fazer propiciação” traduz o verbo grego hilaskesthai, que também tem a ideia de “satisfazer”, “apaziguar”. Aqui, no entanto, com ”pecados” como seu objeto, muito provavelmente significa “apagar”, “remover”, e não “apaziguar”. Mas, e o autor retoma a um conceito muito destacado, o Filho pode ser eficiente como sacerdote somente por meio da identificação com aqueles a quem deve representar. Por isso, era necessário que ele se tomasse semelhante a seus irmãos em todos os aspectos (v. 17).