Estudo sobre Hebreus 6

Estudo sobre Hebreus 6




Hebreus 6

Posto, então, que a maturidade espiritual (ou a imaturidade) é em grande parte uma questão da vontade, o autor os estimula a deixarem os ensinos elementares a respeito de Cristo e a avançarem para a maturidade (6.1). E possível que o verbo traduzido por “avancemos para” devesse receber um sentido passivo — “que sejamos levados para”, pois há uma ambiguidade de significado na forma do verbo grego (pherõmetha). Se o sentido passivo é o correto, “a ideia [não seria] primariamente de esforço pessoal, mas de entrega pessoal a uma influência ativa. O poder está em ação; nós só precisamos ceder a ele” (Westcott, Comm., p. 145; cf. 2Pe 1.21). A ideia de maturidade está em concordância com o uso da palavra em 5.14. E uma referência aos que estão aptos a compreender, apreciar e ser afetados pela “exposição da verdade cristã com seu desenvolvimento mais elevado”.

O resumo que o autor faz dos ensinos elementares a partir dos quais os cristãos devem avançar, no sentido de construírem sobre um fundamento, pode ser dividido em três grupos de dois elementos cada. O primeiro é o arrependimento e a fé, e está relacionado ao ”caráter pessoal” do cristão.

Esse arrependimento é uma reorientação radical de perspectiva que resulta no afastamento de atos que conduzem à morte (v. 1), isto é, de toda a atividade realizada em rebeldia contra Deus (cf. 9.14). A fé, por outro lado, é tanto uma confiança depositada em Deus quanto a obediência sujeitada a ele. O segundo grupo inclui as “ordenanças exteriores” da sociedade cristã e é composto (a) da instrução a respeito de batismos, que está no plural porque a instrução acerca do batismo cristão requeria que ele fosse contrastado com outros rituais de batismo tanto judaicos quanto pagãos, e (b) da imposição de mãos, que era um ato considerado como “continuação e complemento do batismo” e o símbolo da ordenação (cf. l Tm 4.14; 2 Tm 1.6; cf. C. J. Vaughan, The Epistle to the Hebrews, 1890, p. 103). O último grupo é escatológico e está relacionado com a “conexão cristã com o mundo invisível”: a ressurreição dos mortos e o juízo eterno (v. 2).

E avançaremos, se Deus o permitir (v. 3). Essa declaração de condição implica que alguns não estarão aptos para avançar, pois em virtude de suas próprias decisões se posicionaram fora do alcance da permissão de Deus. O autor agora chega à mais solene advertência até aqui na sua carta, quando mostra o final trágico que pode recair sobre uma pessoa que fez sua “profissão de fé” cristã, mas que não avançou além do conhecimento rudimentar das implicações da sua confissão, ou do significado definitivo de Jesus para o perdão dos seus pecados.

As coisas listadas aqui pelo autor para descrever os “caídos” são certamente coisas que retratam todos os verdadeiros cristãos. Eles uma vez foram iluminados (v. 4), uma expressão que pode significar iluminação interior completa — a capacidade dada por Deus para entender e responder de forma positiva à mensagem cristã (cf. Ef 1.18; 3.9; 2Co 4.4). São também os que provaram o dom celestial (v. 4). Agora, se Cristo é o dom que vem de cima (cf. Jo 4.10; Rm 5.15; 8.32), e se provaram significa ter “experimentado” ou “vindo a conhecer” no sentido completo (cf. Arndt e Gingrich, Greek-English Lexicon, geuomai, cf. Hb 2.9), então obviamente o autor tinha em mente a questão da graça e da vida cristã obtida por Cristo e desfrutada completamente pelo cristão (a voz média, geuesthai, denota mais intensamente o caráter pessoal da experiência; cf. C. Spicq, Comm., v. II, p. 150). Além disso, diz-se deles que tornaram-se participantes do Espirito Santo (v. 4). Essa tradução destaca o fato de que esses leitores podem ter sido receptores do Espírito Santo assim como o foram os discípulos de Jesus quando ele soprou sobre eles o Espírito (Jo 20.22), ou os samaritanos quando os apóstolos colocaram as mãos sobre eles (At 8.17) — receptores da essência da vida cristã (Rm 8.9b). Finalmente, são pessoas que experimentaram a bondade da palavra de Deus e os poderes da era que há de vir (v. 5). Experimentaram energias sobrenaturais resultantes da obra de Cristo que são claras manifestações da proximidade (ou presença) da era messiânica (At 2.11,12; cf. Spicq, Comm.).

Visto que essa descrição do “apóstata” indica que ele deu mostras de todos os sinais de ser cristão, muitos comentaristas entendem que ele foi isso mesmo, isto é, um verdadeiro cristão. O Pastor de Hermas (c. 148 d.C.) parece ter sido o primeiro a dar essa interpretação a Hebreus 6, embora mitigue o tema do “não há segundo arrependimento”, ao permitir ao menos mais uma oportunidade (Mandamentos, IV.3).

E necessário destacar, no entanto, que essas expressões descritivas são suscetíveis a mais do que uma interpretação, e, no seu sentido não tão “definitivo”, podem bem ser aplicadas tanto a cristãos “professos” quanto a crentes “genuínos”. “Iluminados” (v. 4) é um termo aplicado por Justino Mártir (morreu c. 165 d.C.; I Apol. 61.12,13) aos batizados — os que haviam dado consentimento à verdade do catecismo cristão por meio de sua sujeição ao batismo. E possível, então, que o autor de Hebreus tenha usado a palavra nesse sentido. Ao menos a Peshita (uma tradução siríaca do século IV) entende a palavra assim, substituindo “iluminados” por “que desceram ao batismo”. Além disso, diversos intérpretes (v. uma lista deles em Spicq, Comm. v. II, p. 150) entendem que a expressão “provaram o dom celestial” (v. 4) significa a participação na ceia do Senhor, “o dom divino por excelência” (cf. Mt 26.26ss, e especialmente At 20.11 em gr., em que “provar” é usado a propósito de comer o pão da eucaristia). A expressão “participantes do Espírito Santo” (v. 4) pode ter o significado menos definitivo de “parceiros juntamente com” o Espírito Santo (cf. 2.14; 3.1,14; 12.8). E as últimas duas expressões (v. 5) podem significar que esses viram o poder criativo do evangelho pregado e até realizaram milagres (cf. Judas Iscariotes).

Vamos resumir então. O autor, ao compor uma lista como essa, pode ter tido em mente descrever alguém que tem todos os sinais distintivos do cristianismo, e que mesmo assim não é um verdadeiro cristão. A única prova de genuinidade é a lealdade contínua que guarda a fé até o final. Da mesma forma que todo o povo de Israel deixou o Egito sob a liderança de Moisés, atravessou o mar Vermelho, comeu o maná do céu, observou os atos poderosos de Deus etc. dando todas as aparências de um povo de fé, mas só dois entraram em Canaã, e o resto caiu morto no deserto, é possível que na igreja visível haja aqueles que experimentaram todas as vantagens do cristianismo, a instrução, o batismo, a ceia do Senhor, as manifestações do Espírito etc. (embora deva ser observado atentamente que nenhum dom de amor é mencionado nessa lista, cf. 6.10), e que mesmo assim são capazes de renunciar a tudo isso porque a atitude interior básica, da qual nem eles mesmos talvez estejam completamente cientes, se tornou uma atitude de incredulidade ou desobediência, uma atitude de NÃO a Deus. A situação aqui, então, pode ser análoga à de Mt 7.21ss.

De todo modo, se os que foram abençoados de forma tão extraordinária caíram (v. 6, lit. “caíram ao lado do caminho”, gr. para-pesontas, uma expressão talvez motivada pela experiência no deserto do antigo Israel), é impossível que sejam reconduzidos ao arrependimento; pois para si mesmos estão crucificando de novo o Filho de Deus, sujeitando-o à desonra pública (v. 6). O “arrependimento” aqui é mais do que tristeza pelo mal praticado no passado; é uma mudança de atitude ou da mente — um ato positivo e confirmatório que acompanha o início de uma nova experiência religiosa e vida moral (Arndt e Gingrich, Greek-English Lexicon), em vez de um mero desviar-se negativo do pecado. Refere-se àquela disposição da mente em direção a Cristo que prevalecia quando o cristão professo tinha sido batizado, mas que, por falta de compromisso moral (5.14), agora foi alterada radicalmente. E a coisa verdadeiramente triste acerca dessa atitude apóstata é que é humanamente (ou psicologicamente) impossível revertê-la, pois não é resultado de uma decisão rápida de um momento de fraqueza, mas de um processo gradual de endurecimento na mente que se cristalizou agora em uma “atitude constante de hostilidade contra Cristo” (como sugerem as expressões ”pois [...] estão crucificando” etc. que usam o tempo presente). Por isso, todos os cristãos professos precisam se estimular a si mesmos e a outros, senão a imaturidade contínua da profissão da fé cristã conduz, a certa altura, à hostilidade contra Cristo. Os que permanecerem leais até o fim demonstrarão que sua confissão de fé foi genuína.

Os v. 7, 8 contêm uma parábola cuja interpretação é coerente com essa ênfase do autor na perseverança como o verdadeiro teste de genuinidade; a chuva deve ser identificada com as cinco bênçãos extraordinárias listadas nos v. 4,5, e a terra, com os leitores da carta. A chuva é comum tanto à terra boa quanto à terra ruim, i.e., grandes bênçãos espirituais são comuns a todos os que professam ser cristãos, os que creem de verdade e os que meramente confessam que assim o fazem. E o que os solos produzem — o tipo de vida que vivem os que se professam cristãos — que tornam visivelmente claro qual é sua verdadeira natureza e que tipo de semente está neles. E mesmo assim, como no âmbito da horticultura em que o solo que é de qualidade e conteúdo pobres não pode ser distinguido imediatamente do solo bom (pois depois de uma chuva até o solo ruim parece promissor com sua miríade de brotos verdes), assim é na igreja visível. Todos podem até ter sido bem instruídos etc. e podem ter feito sua confissão de fé e dado evidência de genuinidade. Mas como o tempo prova que um tipo de solo é ruim e seu produto são espinhos e ervas daninhas (v. 8), ou o inverso, assim o tempo faz com aqueles que afirmam ser cristãos. A perseverança dos santos, por um lado, dá prova da realidade da sua confissão. A falta dela dá testemunho do contrário. Um recebe a bênção de Deus (v. 7), enquanto o outro está em perigo de ser amaldiçoado. Seu fim é ser queimada [a terra] (v. 8). “Em perigo de ser amaldiçoada” não significa meramente que o juízo é ameaçador, e pode ser evitado por uma subsequente e inesperada fertilidade da terra, mas que é inevitável (cf. a mesma construção encontrada em 8.13, engys aphanismou, em que o desaparecimento da antiga aliança não significa que ela seja simplesmente suscetível a desaparecer, mas, antes, que o seu desaparecimento é certo; cf. tb. Mc 1.15 com Mt 12.28). Tampouco é apropriado pensar somente no produto da terra como sendo queimado, pois a queima é na realidade o castigo executado sobre a própria terra amaldiçoada (cf. Gn 19.24; Dt 29.22). A expressão “Seu fim é ser queimada” pode ser um hebraísmo equivalente à nossa expressão “dedicada à destruição” (cf. SI 109.13). E simplesmente a aplicação do princípio estabelecido em 2Co 11.15: “O fim deles será o que as suas ações merecem” — i.e., o que acontecer com o seu fruto, acontecerá com eles também (Spicq, Comm., v. II, p. 156). Em outras palavras, a pessoa que confessa ser cristã e desfruta de todos os benefícios espirituais decorrentes dessa confissão, mas que não persiste na sua lealdade a Cristo até o fim, só pode olhar adiante para a fúria de fogo que vai consumi-la no dia do juízo (10.27); enquanto a pessoa que se confessa cristã e continua fielmente na sua confissão desfruta e continuará desfrutando da bênção de Deus.

Encorajamento e consolo (6.9-20)

Depois da advertência, vem o encorajamento. Essa seção começa com uma declaração da confiança do autor nos seus leitores, a quem ele chama Amados somente aqui na carta (v. 9). E uma confiança inspirada por seu conhecimento do caráter do Deus que não é injusto de esquecer o trabalho deles (v. 10), e a sua vida passada e presente de amor (observe essa importante palavra; não é o “trabalho do amor”, como na ACF) que demonstraram pela causa de Deus e ao ajudarem seu povo (v. 10; cf. tb. 10.32-34). O encorajamento continua, com o autor dando as razões de uma advertência tão severa. Foi por causa da sua preocupação intensa pelo bem-estar de cada indivíduo cristão (v. 11). Também foi dado para que eles pudessem demonstrar alguma emoção ou prontidão até o fim, para que tenham a plena certeza da esperança (v. 11), e para que eles não ficassem embotados (negligentes, v. 12), ou para que fossem despertados da sua negligência se já estavam nesse ponto (cf. 5.11), e, finalmente, para que fossem estimulados a serem imitadores daqueles que, por meio da fé e da paciência, recebem a herança prometida (v. 12; cf. cap. 11) , isto é, daqueles que por meio da sua contínua lealdade e obediência a Deus já obtiveram o cumprimento da sua oferta. “Mais uma vez, a continuidade é destacada como a prova da realidade”. Mais uma vez, também, é evidente que a letargia espiritual, o perigo de “desviar-se”, a indiferença, e coisas parecidas, são os pecados combatidos nessa carta.

O apelo à perseverança recebe agora um incentivo por meio da garantia dada ao leitor da validade absoluta da promessa divina (v. 13-20). No princípio, Deus fez uma promessa a Abraão. Para lhe dar um incentivo para que acreditasse que a promessa seria cumprida, Deus, adaptando-se a um costume humano como o de um homem fazer um juramento por algo maior do que ele, assim dando garantia adicional à validade da sua declaração, jurou por si mesmo (v. 13), visto que não havia ninguém maior por quem pudesse fazer tal juramento. E foi assim que [...] Abraão recebeu todas as garantias possíveis de que se ele perseverasse com paciência receberia a promessa (v. 15). Abraão de fato recebeu o cumprimento da promessa (v. 15), mas, no pensamento do autor, o escopo daquela promessa não foi exaurido na experiência terrena de Abraão. Deus não somente tinha dito a ele: “Esteja certo de que o abençoarei e farei numerosos os seus descendentes” (v. 14; cf. Gn 22.17), mas também tinha dito: “por meio dela, todos os povos da terra serão abençoados” (Gn 22.18). Agora, embora não haja aqui nenhuma citação de Gn 22.18, nem referência explícita ao fato de que a “semente” de Abraão seja Cristo, mesmo assim, como Paulo (cf. G1 3.16), o autor deve ter tido isso em mente porque ele vislumbra os cristãos como sendo os herdeiros da promessa feita a Abraão (v. 17). Por consequência, eles também estão interessados na sua validade. O fato de que envolve duas coisas imutáveis — a promessa em si e o juramento que está fundamentado no ser de Deus — nas quais é impossível que Deus minta oferece forte encorajamento (v. 18) para que os cristãos perseverem enquanto esperam pelo cumprimento final daquela promessa, i.e., a bênção celestial para a qual até Abraão olhou (cf. 11.8-19).

Essa esperança é como uma âncora da alma (v. 19) que Cristo pegou e soltou de maneira segura no porto. Na verdade, o autor de Hebreus mistura as suas metáforas nesse ponto, pois ele não diz “porto” como poderíamos esperar com a palavra “âncora”, mas menciona o santuário interior, por trás do véu (v. 19). Essa âncora de esperança ata o cristão firmemente ao lugar da presença de Deus, o mundo celestial. Essa mudança inesperada na figura de linguagem é um bom artifício retórico para conduzir os leitores de volta ao tópico já iniciado — o sacerdócio de Cristo (cap. 5). O véu era a cortina interior que separava o Lugar Santo do Lugar Santíssimo. Cristo transpôs esse véu e entrou no Lugar Santíssimo para agir em nosso lugar (v. 20). Mas ele fez isso como precursor (cf. ARA; gr. prodromos, usado na literatura clássica acerca de um batedor fazendo reconhecimento do terreno, ou de um arauto anunciando a vinda de um rei) — uma palavra que sugere que outros devem seguir, i.e., os cristãos também devem ser levados àquela mesma área sagrada. Isso era de fato uma declaração surpreendente, pois, embora o antigo sumo sacerdote fosse o representante do seu povo, ele nunca foi o seu precursor — o povo nunca tinha permissão de segui-lo para além do véu. Mas o tom fundamental de Hebreus é que o novo sumo sacerdote garante a cada crente o privilégio do acesso confiante ao Lugar Santíssimo — a presença do Deus vivo, e isso é resumido numa palavra cuidadosamente escolhida: “precursor”. Jesus “foi para que possamos segui-lo” (F. W. Gingrich, Forerunner, Dictionary of the Bible, de Hastings, ed. rev., p. 303-4).