Estudo sobre Hebreus 4

Estudo sobre Hebreus 4


O capítulo 4 continua a mesma advertência iniciada em 3.6b acerca da possibilidade de se pôr a perder a entrada no descanso de Deus. Que há esse descanso o autor prova na sua forma típica de exegese por meio de uma citação de Gn 2.2: “‘No sétimo dia Deus descansou de toda a obra que realizara’” (v. 4). Que Deus deseja compartilhar esse descanso e que a promessa de entrada nesse descanso ainda é válida são fatos demonstrados por dois outros textos, ambos do salmo 95. O primeiro cita Deus como dizendo: “‘Jamais entrarão no meu descanso’” (v. 5). Essa é uma afirmação curta condensando diversas ideias em uma breve observação. Deus, que nunca deseja algo em vão, deve ter desejado compartilhar seu descanso, senão nunca teria feito o convite aos homens para se juntarem a ele nisso. Mas já que ele fez isso, e visto que os que ele convidou primeiro não entraram, por causa da desobediência (v. 6), e visto que os propósitos de Deus não podem ser frustrados, a oferta para que se entre no prazer do seu descanso ainda deve ser válida. O autor então prossegue e usa outra parte do salmo 95 para demonstrar essa conclusão. Deus ainda está fazendo o seu convite aos homens para que se juntem a ele no seu descanso: “‘Se hoje vocês ouvirem a sua voz, não endureçam o coração’” (v. 7). Com esse “hoje”, o autor entende que Deus está novamente estabelecendo determinado dia (v. 7), definindo “um novo período em que o descanso está aberto e é acessível”. Assim, ainda resta um descanso sabático para o povo de Deus (v. 9). Com base nisso, aprendemos que o “descanso de Deus” não pode ser identificado com Canaã, pois o segundo e duradouro convite de Deus veio por meio de Davi que viveu muito depois de Josué (“Jesus”, VA) ter conduzido Israel à terra prometida (v. 8). [Observação: Essa atribuição do salmo 95 a Davi só é encontrada na LXX; não está no texto hebraico.] Mas se Josué lhes tivesse dado descanso, Deus não teria falado [...] a respeito de outro dia (v. 8). Assim, a tragédia do incrédulo Israel é vista como sendo bem maior do que parecia na superfície. A importância do seu fracasso não estava meramente no fato de que não puderam entrar em Canaã, mas no fato de que também foram irrevogavelmente excluídos do descanso eterno de Deus.

E contra esse pano de fundo — a possibilidade de um descanso eterno e também a possibilidade de não atingi-lo — que o autor faz seu apelo: Visto que nos foi deixada a promessa de entrarmos no descanso de Deus, que nenhum de vocês pense que falhou (v. 1). Aqui há tanto severidade quanto cuidado carinhoso — severidade na necessidade de temor; cuidado carinhoso na “forma sensível e cautelosa” com que o autor expressa a possibilidade do fracasso. Poderíamos formular a frase assim: “que nenhum de vocês pense que falhou segundo o juízo de outros”. O fracasso, o autor continua explicando, sempre está na incredulidade. O mero ouvir das boas novas não é suficiente. O evangelho precisa ser acompanhado de fé nos ouvintes (v. 2). Quando isso acontece, torna-se eficaz, pois nós, os que cremos, é que entramos naquele descanso (v. 3). Observe que o tempo do verbo é presente — “entramos”. Assim, o descanso de Deus não é totalmente um alvo futuro a ser atingido, mas uma realidade presente a ser desfrutada. O autor cunha uma palavra para descrevê-lo e o chama de descanso sabático (v. 9, gr. sabbatismos), pois todo aquele que entra no descanso de Deus, também descansa das suas obras, como Deus descansou das suas no sábado, i.e., no sétimo dia (v. 10; cf. v. 4).

O que quer dizer descansa das suas obras, como Deus descansou das suas? Visto que é impossível conceber Deus descansando de boas obras, a ideia de Deus descansando deve significar que ele trabalhava sem empecilhos ou tensões, com energia fluindo dele com tranquila constância (cf. Jo 5.17; cf. tb. A. C. Purdy, “Hebrews”, The Interpreter’s Bible, v. XI, p. 631). Se isso estava na mente do autor, então ”descansa das suas obras” descreve a interrupção de atividade fútil feita em resistência a Deus, isto é, de obras mortas (cf. 9.14), para encontrar descanso numa vida de completa dependência dele — muito semelhante ao ”contraste entre a vida de fé em Cristo e a vida de realização de obras da lei” em Paulo (Narborough, Comm., p. 95). Embora seja verdade que Deus não pode descansar de boas obras, mesmo assim o verbo hebraico (shãbath, do qual vem “sábado”) de fato significa “cessar, desistir, descansar”. “Deus descansou”, então, deve significar que Deus desistiu do (interrompeu o) que estava fazendo, i.e., de sua atividade na criação. E, quando um homem entra no seu descanso sabático, ele também deve desistir do que estava fazendo, nesse caso tentando atingir sua própria salvação. “De forma mais positiva, temos permissão para preencher a palavra com o significado derivado do desejo predominante do autor de uma adoração satisfatória a Deus. Esse descanso é paz na certeza do acesso a Deus que não é impedido por rituais que não podem tocar a consciência, e que se torna possível somente pela obra de Cristo da ‘purificação dos pecados’ que corrompem e nos impedem de atingir o alvo final da adoração” (Purdy, Comm., p. 631). Visto que isso agora está disponível, esforcemo-nos por entrar nesse descanso (v. 11).

A impossibilidade de esconder de Deus a incredulidade (4.12,13)

Visto que a incredulidade com frequência é uma questão do coração, muitas vezes ela escapa da observação dos homens, mas nunca de Deus, cuja palavra é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes (v. 12). Ela tem o poder de atingir diretamente as partes mais íntimas da nossa personalidade. Tem o poder de julgar (gr. kritikos) tanto os sentimentos quanto os pensamentos do coração (cf. Sabedoria 18.15ss). E capaz de discernir e decidir acerca do valor moral de um homem. A expressão “palavra de Deus” pode ser uma referência àquela mensagem falada pelos profetas, ou por Cristo e seus apóstolos, que em si mesma possui uma dinâmica tão intensa que quando ouvida e preservada cria algo novo (cf. Rm 1.16), ou pode simplesmente ser uma circunlocução para o próprio Deus, como às vezes se fazia. Observe que no v. 13 a “palavra” é deixada para trás, e aí estamos diante do próprio Deus — completamente expostos. O que realmente somos é exposto diante dos olhos daquele a quem havemos de prestar contas.

Com isso, o autor conclui a sua longa advertência e chega ao tópico que é mais precioso ao seu coração e que ele já mencionou duas vezes anteriormente (1.3b; 2.17,18) — isto é, o sacerdócio de Jesus.

IV O SACERDÓCIO DE JESUS É APRESENTADO (4.14—5.10)

Os sofrimentos do sacerdote e seu significado (4.14-16)

Da advertência, o autor se volta agora para o consolo e encorajamento que ele associa inseparavelmente à obra sacerdotal de Cristo — um tema que de forma muito real constitui o tema principal da carta. A vida de fé, embora difícil, não está privada de apoio exterior: temos um grande sumo sacerdote (v. 14) que pode nos ajudar (v. 16). E a grandeza desse sumo sacerdote é medida (a) pelo fato de que adentrou os céus para a presença de Deus, assim como o antigo sumo sacerdote passava pelo véu para o Lugar Santíssimo — o lugar do real serviço em favor dos homens, e (b) pelos nomes atribuídos a ele aqui: Jesus, o Filho de Deus. Esses nos contam que ele é tanto homem quanto Deus, tanto “compassivo quanto poderoso”. Portanto, apeguemo-nos com toda a firmeza à fé que professamos (v. 14). Essa exortação está fundamentada no fato de que o nosso sumo sacerdote também sofreu e foi tentado, pois essas experiências do Salvador têm grande importância para nós. Elas significam que há um incentivo para que perseveremos, pois embora Jesus tenha passado, como nós, [...] por todo tipo de tentação (v. 15), mesmo assim ele permaneceu fiel até o fim. Elas também significam que, porque ele sofreu e foi tentado, pode compreender de maneira compassiva o que estamos passando, pode ser sensível às nossas fraquezas e fazer algo para nos ajudar (v. 15,16). Portanto, aproximemo-nos [continuamente] do trono da graça [...] a fim de recebermos misericórdia e encontrarmos graça que nos ajude no momento da necessidade (v. 16), e façamos isso com toda a confiança. Essa é a primeira afirmação, a ser repetida muitas vezes, indicando os resultados finais da obra sacerdotal de Cristo — acesso livre à presença de Deus para todos que quiserem vir. A expressão “aproximar-se” (usada sete vezes em Hebreus) era um termo técnico empregado na LXX acerca dos sacerdotes que tinham permissão exclusiva de se aproximarem de Deus no serviço da adoração: Agora “o direito da aproximação sacerdotal é estendido a todos os cristãos” (Westcott, Comm., p. 108). O autor de Hebreus destaca o caráter divino desse novo sumo sacerdote começando com a descrição dele no seu papel cósmico como criador e Filho de Deus, mas ele também destaca a realidade da sua humanidade como nenhum outro autor do NT. Ele insiste, por exemplo, em que as tentações de Jesus não foram tentações forjadas — foram genuínas: passou por todo tipo de tentação, como nós. Gomo isso é possível se ao mesmo tempo ele era Filho de Deus? A sua natureza divina não o protegeria da possibilidade de pecar? Essa questão da possibilidade de Cristo pecar tem sido debatida por séculos, e ainda não há uma solução satisfatória para todos. Não pode ser discutida agora. Não obstante, pressupondo que era impossível para ele pecar, em virtude da natureza da sua pessoa, há também a possibilidade de se pressupor que ele não sabia que esse era o caso. Marcos 13.32 sugere que o Filho, no seu papel encarnado, não era onisciente — há ao menos uma coisa registrada ali que ele não sabia. Se, então, havia uma coisa que ele não sabia, o desconhecimento de outros fatos também era possível, até mesmo com referência ao fato de ele saber ou não saber se podia pecar. De todo modo, embora Hebreus diga que ele viveu a sua vida sem pecado (v. 15; gr. chõris hamartias, lit. “à parte do pecado”, não significando “sem a capacidade de pecar”, mas “sem ter de fato pecado”), isso também deixa claro que Jesus experimentou tentações exatamente da mesma maneira que nós e que sua impecabilidade foi o resultado de “decisão consciente” da sua parte em meio a intensas lutas (cf. 5.7-9). Nunca podemos supor que sua vitória sobre o pecado foi “mera consequência formal da sua natureza divina”. Qualquer interpretação da pessoa de Cristo que de alguma forma diminua a força e genuinidade das suas tentações não pode ser correta.