Estudo sobre Mateus 15:1-39

Mateus 15

Não é exagerado afirmar que por mais difícil e obscuro que nos resulte esta passagem, é uma dos mais importantes de todo o evangelho. Representa um choque frontal entre Jesus e os líderes da ortodoxia judia. Seu começo torna evidente que os escribas e fariseus tinham feito todo o trajeto de Jerusalém a Galiléia para formular suas perguntas a Jesus. Nessa ocasião, não há por que pensar que as perguntas são maliciosas.

Nesta oportunidade os escribas e fariseus não estão tratando de enredar a Jesus com má intenção. Sentiam-se verdadeiramente surpreendidos. E em muito pouco tempo se sentiriam verdadeiramente indignados e escandalizados. Porque o mais fundamental desta passagem é que não se trata tanto de um choque frontal entre Jesus e os fariseus; é muito mais que isso: trata-se do choque entre duas interpretações da religião, e dois conceitos das exigências de Deus. Tampouco existia a menor possibilidade de chegar a um acordo ou a algum acordo entre estas duas interpretações da religião. Era inevitável que alguém destruísse a outra se não queria perecer. De maneira que, nesta passagem, encontramo-nos com uma das lutas religiosas mais importantes da história. Para compreendê-lo devemos tratar de entender o pano de fundo da religião judia dos fariseus e os escribas.

Nesta passagem nos encontramos com toda a concepção do puro e o impuro. Devemos ter bem presente que esta idéia de pureza e impureza não tem nada a ver com a limpeza física nem com a higiene, exceto de maneira muito remota. Trata-se de uma questão puramente cerimonial. Estar limpo ou puro significava estar em um estado em que se podia adorar e aproximar-se de Deus. Ser impuro significava encontrar-se em um estado em que tal adoração e aproximação eram impossíveis. Esta impureza se contraía ao tocar certas pessoas ou ao tocar ou comer certas coisas. Uma mulher era impura, por exemplo, se tinha um fluxo de sangue, embora tal fluxo fosse o seu período menstrual normal. Era impura durante um tempo determinado depois de ter dado à luz um filho. Todo corpo morto era impuro, e tocar um cadáver significava converter-se em impuro. Tudo gentio era impuro.

Esta impureza era transmissível, quer dizer, era algo assim como infecciosa. Se um camundongo tocava uma vasilha de barro, por exemplo, essa vasilha se convertia em algo impuro. Se não fosse lavada e limpada, seguindo um ritual determinado, tudo o que se introduzia nela era impuro. Como resultado disto, qualquer um que tocasse na vasilha ou que comesse ou bebesse seu conteúdo se tornava impuro. Por sua vez, qualquer um que tocasse a pessoa que se tinha feito impura, também se convertia em impuro. Esta idéia não pertence aos judeus com exclusividade. Também é encontrada em outras religiões. Para um hindu de uma casta superior qualquer um que não pertence à mesma casta é impuro; se essa pessoa se fizer cristã, é ainda mais impura.

Premanand, o grande hindu que se converteu ao cristianismo, relata-nos em sua autobiografia o que aconteceu a ele. Converteu-se em cristão, sua família o expulsou. Às vezes costumava voltar para ver sua mãe que se sentia desesperada pelo que considerava a apostasia de seu filho, mas que o seguia amando. Premanand nos conta: “Apenas meu pai se inteirava que eu ia visitar minha mãe durante o dia quando ele estava em seu escritório, ordenava ao porteiro, um homem forte do campo, Ram Rup... que não me deixasse entrar na casa.” Convenceu-se a Ram Rup que não exercesse uma vigilância tão estrita. “Por último minha mãe persuadiu a Ram Rup, o porteiro, e me permitiu entrar para vê-la. O preconceito era tão grande que até os serventes hindus da casa se negavam a lavar os pratos em que minha mãe me dava de comer. Às vezes minha tia purificava o lugar onde eu tinha estado e o assento que tinha usado, salpicando-o com água do Ganges ou com água mesclada com estrume de vaca.” Premanand era impuro e tudo o que tocava se convertia em impuro.

Devemos assinalar que não há nada moral nisto. O fato de tocar certas coisas produzia essa impureza, e tal impureza excluía quem a sofria da sociedade dos homens e da presença de Deus. Era como se certa virtude especial ou infecção rodeasse como um halo ou algumas coisas e pessoas. Possivelmente possamos compreender isto melhor se lembramos que a idéia não desapareceu completamente na civilização ocidental, embora, neste caso, funciona em geral no sentido oposto. Ainda existe gente que acredita que coisas como um trevo de quatro folhas, ou um amuleto metálico ou de madeira, ou um gato preto, trazem boa ou má sorte.

De maneira que aqui nos deparamos com uma idéia da religião que vê nela algo que consiste em evitar o contato com certas coisas e pessoas porque são impuras. E, se se tinha tido contato, era preciso levar a cabo a purificação ritual necessária para livrar-se da impureza contraída. Mas devemos seguir um pouco mais com este tema.

Estudo sobre Mateus 15:1-9

Estas leis de pureza e impureza tinham implicações ainda mais amplas. Estabeleciam o que uma pessoa podia comer assim como o que não podia comer. Em termos gerais, toda a comida e os vegetais eram impuros. Mas, no referente a criaturas viventes, as leis eram estritas. Estas leis aparecem em Levítico 11. Podemos resumi-las em poucas palavras. Dos animais só se podiam comer aqueles que tinham unhas fendidas e ruminavam. Essa é a razão pela qual nenhum judeu pode comer carne de porco, coelho ou lebre. Em nenhum caso se podia comer a carne de um animal que tivesse morrido por morte natural (Deut. 14:21). Em todos os casos era preciso escorrer o sangue do cadáver. Mesmo na atualidade, um judeu ortodoxo compra sua carne em um açougue kosher onde somente se vende carne que recebeu este tratamento. Podia-se comer a gordura comum mas não a gordura dos rins ou das vísceras que nós denominamos tripas. No que respeita aos animais marinhos, só se podia comer aqueles que tivessem barbatanas e escamas. Isso quer dizer que os frutos do mar, tais como as lagostas, são impuros. Todos os insetos são impuros com uma exceção: podia-se comer lagostas, e no Oriente ainda se comem. Como já vimos há uma prova para saber que animais e que peixes se podem comer. Mas no caso das aves não existe tal prova. A lista das aves impuras e proibidas aparece em Levítico 11:13-21. Tinha determinadas razões muito identificáveis para tudo isto.

(1) O não tocar corpos mortos ou comer a carne de um animal que tinha morrido por causas naturais pode ter tido alguma relação com a crença nos espíritos malignos. Seria fácil pensar que um demônio tinha vindo habitar em um cadáver e que desse modo entrava no corpo de quem o comia.

(2) Alguns animais eram sagrados em outras religiões. O gato e o crocodilo, por exemplo, eram sagrados na religião egípcia, e seria muito natural que o judeu considerasse impuro a qualquer animal que outras religiões veneravam. Vê-lo-ia como uma espécie de ídolo, sagrado para um deus pagão, e portanto perigosamente impuro.

(3) Como assinala o doutor Rendle Short em seu muito útil livro, The Bible and Modern Medicine, algumas das normas eram muito sábias do ponto de vista da saúde e a higiene. O doutor Short escreve:

“É certo que nós comemos porco, coelhos e lebres mas estes animais são propensos a infestações parasitárias e só estão fora de perigo quando são muito bem cozidos. O porco é um animal sujo em sua alimentação e cria dois parasitas, a triquina e a tênia, que podem transmitir-se ao homem. Nas condições atuais de nossas cidades o perigo é mínimo, mas não devia sê-lo na Palestina da antiguidade e era melhor evitar tal alimento.”

A proibição de comer algo que contivera sangue provém do fato de que, no pensamento judeu, o sangue é a vida. Este pensamento é natural visto que assim como flui o sangue, também o faz a vida. E a vida pertence a Deus e nada mais que a Ele. A mesma ideia explica a proibição de comer gordura. A gordura é a parte mais saborosa do cadáver e a parte mais saborosa deve entregar-se a Deus. Em alguns casos, embora não em muitos, as proibições e as leis sobre comidas eram muito sensatas.

(4) Mas ficam uma quantidade de casos nos quais as coisas, as bestas e os animais eram impuros sem que houvesse nenhuma razão oferecida para isso. Os tabus sempre são inexplicáveis, não são mais que superstições sem razão de ser, mediante as quais se relacionam certas coisas vivas com a boa ou a má sorte, com a pureza ou a impureza.

Estas coisas não seriam muito importantes por si mesmas, mas o problema e a tragédia era que para os escribas e fariseus se converteram em uma questão de vida ou morte. Observar estas leis boas era servir a Deus, ser religioso. Se o expusermos do modo seguinte, veremos o resultado disto. Para a mente farisaica a proibição de comer carne de coelho ou de porco era um mandamento de Deus da mesma envergadura que a proibição do adultério. De maneira que era tão pecaminoso comer porco ou coelho como seduzir a uma mulher ou desfrutar de relações sexuais ilícitas. A religião se mesclou com todo tipo de regras e normas externas. E como é muito mais fácil observar regras e normas e controlar a quem não o faz, estas regras e normas tinham chegado a ser a religião do judeu ortodoxo.

Agora chegamos ao impacto especial que tudo isto tinha sobre a passagem que estamos estudando. Era evidente que era impossível evitar todos os tipos de impureza cerimonial. A pessoa podia evitá-la mas como podia estar seguro de que não havia tocado alguém impuro pela rua? O fato de tocá-lo o convertia em impuro, porque, como vimos, a impureza era contagiosa. Esta se complicava mais ainda pelo fato de que na Palestina havia gentios e até a terra que tocava o pé de um gentio se convertia em impura.

A fim de combater esta impureza se elaborou um complicado sistema de lavacros. Esses lavacros foram complicando-se cada vez mais. A princípio houve uma lavagem de mãos ao levantar-se pela manhã. Logo se desenvolveu um complexo sistema de lavagens que no começo só concernia aos sacerdotes no templo. Antes de comer a parte do sacrifício que lhes correspondia, devia passar por estes lavados. Logo os mais estritos entre os judeus ortodoxos empregaram e exigiram para si estas lavagens complicadas; também as empregaram todos os que afirmavam ser realmente religiosos.

Em The Life and Time of Jesus the Messiah Edersheim resume as lavagens mais complicadas. Mantinham-se jarros com água para serem usados antes da comida. A quantidade mínima de água que se devia empregar era um quarto de log (um log equivale a meio litro), que se define como suficiente para encher uma casca e meia de ovo. Primeiro jogava a água sobre ambas as mãos que se mantinham com os dedos para acima, e devia correr até o punho. Devia cair de volta de fora do punho porque agora a água mesma era impura já que havia tocado as mãos impuras, e se voltava a correr pelos dedos voltaria a convertê-los em impuros. O procedimento se repetia com as mãos na posição contrária, com os dedos para abaixo. Por último se lavava cada mão esfregando cada uma delas com a palma da outra. Um judeu realmente estrito repetia isto não só antes de cada refeição mas também entre um prato e outro.

De maneira que a pergunta dos líderes ortodoxos judeus a Jesus é: “Por que não observam seus discípulos as leis sobre lavar as mãos que estabelece nossa tradição?” Fala da tradição dos anciãos. Para o judeu a Lei havia duas seções. Havia a Lei escrita que se encontrava nas próprias Escrituras. E havia a Lei oral que constava dos desenvolvimentos, tal como as da lavagem das mãos, que os escribas e especialistas tinham elaborado através das gerações. E todos estes desenvolvimentos eram a tradição dos anciãos que se considerava tão obrigatória, se não mais, como a Lei escrita. Mais uma vez devemos parar para lembrar o elemento principal – para o judeu ortodoxo todo este ritual era a religião, isto era o que eles entendiam que Deus exigia. Fazer estas coisas significava agradar a Deus e ser um homem bom. Para expressá-lo de outra forma, todo este assunto da lavagem ritual se considerava tão importante e tão obrigatório quanto os mesmos Dez Mandamentos. Chegou-se a identificar a religião com uma quantidade de regras externas. Era mais importante lavar as mãos de um modo determinado que obedecer o mandamento: “Não cobiçarás.”

Jesus não respondeu de maneira direta à pergunta dos fariseus. O que fez foi tomar um exemplo da obediência à lei oral e cerimonial para demonstrar que a observância dessa lei, longe de ser uma obediência à lei de Deus, podia converter-se em uma contradição a tal lei. Jesus diz que a lei de Deus ordena honrar pai e mãe; logo passa a afirmar que se um homem disser: “É uma oferenda”, fica livre do dever de honrar a seu pai e sua mãe. Se buscarmos a passagem paralela em Marcos vemos que a frase é: “É Corbã.” O que significa para nós esta passagem obscura? De fato pode ter dois sentidos, porque Corbã tem dois significados.

(1) Corbã pode significar aquilo que se oferece ou dedica a Deus. Agora, suponhamos que alguém tenha um pai ou mãe que vivia na pobreza e necessidade, e suponhamos que esse pai pobre e ancião chegasse a seu filho em busca de ajuda. Havia uma forma na qual o homem podia evitar ajudar a seus pais. Podia dedicar oficialmente todo seu dinheiro e propriedades a Deus e ao templo. Nesse caso sua propriedade seria Corbã, oferecida a Deus, dedicada a Deus, então diria a seu pai ou mãe: “Sinto muito, não posso lhe dar nada, todos os meus pertences estão dedicados a Deus.” Qualquer um podia fazer uso de uma prática e regra ritual e cerimonial para fugir da obrigação básica de ajudar e honrar a seu pai e a sua mãe. Podia aferrar-se a uma regra dos escribas para apagar um dos Dez Mandamentos.

(2) Mas Corbã tem outro sentido, e pode ser que nesta passagem se trate desse segundo significado. Corbã se usava como juramento. Qualquer um podia dizer a seu pai ou mãe: “Corbã, se qualquer coisa que possuo é empregada alguma vez para ajudá-los.” Agora, suponhamos que este homem tivesse dor de consciência; suponhamos que tinha preferido seu rechaço em um momento de ira, de mau humor ou de irritação, suponhamos que ao voltar a pensar sobre isto experimentava um sentimento mais generoso e filial e que sentia que, depois de tudo, existia o dever e a obrigação de ajudar a seus pais. Em tal caso qualquer pessoa razoável diria que o homem tinha experimentado um arrependimento genuíno, que sua mudança de idéia era algo bom, e que agora estava disposto a fazer o correto e obedecer a lei de Deus. “Não”, diria o escriba, “nossa lei diz que nunca se pode romper um juramento.” Citaria Números 30:2: “Quando um homem fizer voto ao SENHOR ou juramento para obrigar-se a alguma abstinência, não violará a sua palavra; segundo tudo o que prometeu, fará.” O escriba arguiria em forma legalista: “Fez um juramento, não pode quebrá-lo por motivo algum.”

Isso quer dizer que o escriba ataria a pessoa a um juramento apressado, feito em um momento de irritação, um juramento que de fato obrigava essa pessoa a desobedecer a lei suprema da humanidade e de Deus. Isso é o que Jesus quis dizer. Significava o seguinte: “Vocês estão empregando suas interpretações de escribas, suas tradições, para obrigar o homem a desonrar a seu pai e sua mãe, inclusive quando ele mesmo se arrependeu e viu qual é o seu dever.”

O que parece estranho e trágico ao mesmo tempo é que os escribas e fariseus da época de Jesus foram contra o que diziam os maiores mestres judeus. O rabino Eliézer havia dito: “A porta se abre para o homem graças a seu pai e sua mãe.” Isto significava que se alguém fez um juramento pelo qual desonrava a seu pai e sua mãe, e se tinha arrependido disto, a porta se lhe abria para mudar de ideia e agir em outra forma, mesmo apesar de seu juramento. Como acontecia com muita frequência, Jesus não apresentava aos homens uma verdade desconhecida. Recordava-lhes coisas que Deus já lhes havia dito, e que eles conheciam mas que haviam esquecido, porque tinham chegado a preferir os frutos de seu engenho humano às grandes coisas simples da lei de Deus.

Aqui é onde encontramos o choque e o enfrentamento. Aqui vemos a luta entre dois tipos de religião e duas classes de culto. Para os escribas e fariseus a religião era a observância de certas regras, normas e rituais externos, tais como a forma correta de lavar as mãos antes das comidas. Era a observância estrita de uma visão legalista da vida. Para Jesus a religião era algo centralizado no coração, era algo que se manifestava em compaixão e generosidade, que estão acima da lei. Para os escribas e fariseus o culto era um ritual, uma lei cerimonial. Para Jesus o culto era o coração puro e a vida de amor. Nisto está o choque. E esse choque ainda existe.

O que é a adoração? Ainda hoje há muitos que afirmam que o culto não é tal a menos que o leve a cabo um sacerdote ordenado, segundo certas normas, em um edifício consagrado em uma forma determinada e seguindo uma liturgia estabelecida por uma igreja determinada. E todas estas coisas são elementos externos. Uma das maiores definições do culto é a que expressou William Temple: “Adorar é aliviar a consciência com a santidade de Deus, alimentar a mente com a verdade de Deus, enriquecer a imaginação com a beleza de Deus, abrir o coração ao amor de Deus, submeter a vontade ao propósito de Deus.” Devemos nos cuidar muito bem de nos escandalizar pela aparente cegueira dos escribas e fariseus, de nos surpreender por sua insistência nas cerimônias externas e de ser culpados nós mesmos da mesma falta. A religião jamais pode fundamentar-se em nenhuma cerimônia ou ritual, a religião deve fundamentar-se sempre sobre as relações pessoais entre os homens.

Estudo sobre Mateus 15:10-20

Pode-se afirmar sem cair no exagero que, para o judeu, estas eram as palavras mais surpreendentes que Jesus podia pronunciar. Porque ao dizer isto não se limita a condenar o ritual e a religião cerimonial dos escribas e fariseus; de fato, varre com muitas partes do livro de Levítico. Não é somente uma contradição da tradição dos anciãos. É uma contradição da própria Escritura. Estas palavras de Jesus invalidam todas as leis sobre mantimentos que aparecem no Antigo Testamento. É muito possível que essas leis pudessem subsistir como questões de saúde, higiene, sentido comum e sabedoria médica, porém nunca mais poderiam invocar-se como questões de religião. De modo definitivo Jesus estabelece que o que importa não é o estado da observância ritual de alguém, e sim o estado de seu coração.

Não é surpreendente que os escribas e fariseus se escandalizaram. Estava-lhes tirando a base de sustentação de sua religião. Esta afirmação não era apenas alarmante, era revolucionária. Se Jesus estava certo, toda sua teoria da religião estava equivocada. Eles identificavam a religião e o agradar a Deus com a observância de regras e normas que se referiam à pureza e impureza, ao que alguém comia, à forma em que se lavava as mãos antes de comer. Jesus identificava a religião com o estado do coração do homem e dizia com toda crueldade que as regras dos escribas e fariseus não tinham nada a ver com a religião. Jesus dizia que os fariseus eram guias cegos que não conheciam absolutamente o caminho que conduzia a Deus, e que se o povo os seguia tudo o que podiam esperar era sair do caminho e cair na fossa. E Jesus tinha razão.

(1) Se a religião consistir em regras e observâncias externas, é duas coisas. É muito fácil. É muito mais fácil se abster de certas comidas e lavar as mãos de uma maneira determinada que amar e perdoar o que não é amável e o imperdoável, e ajudar aos necessitados às custas do tempo, do dinheiro, do conforto e do prazer de si mesmo. Ainda não aprendemos esta lição em toda a sua plenitude. Assistir à igreja com regularidade, dar dinheiro em forma generosa, ser membro de um grupo de estudo bíblico, são coisas externas. São meios para chegar à religião, mas não são a religião; porque nunca poderemos lembrar com suficiente freqüência que a religião consiste em relações pessoais e em uma atitude para com Deus e para com nosso próximo. Além disso, se a religião consistir em observâncias externas é algo equivocado. Mais de uma pessoa tem uma vida irrepreensível nas coisas exteriores, mas dentro de seu coração alimenta os pensamentos mais amargos e maus, e o ensino de Jesus é que toda a obediência externa do mundo não pode expiar a amargura, o orgulho e a luxúria que reinam no coração.

(2) Jesus ensina que a parte do homem que importa é seu coração. “Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus” (Mateus 5:8). O que importa a Deus não é tanto como agimos mas sim por que o fazemos; nem tanto o que de fato fazemos, mas sim o que no fundo de nossos corações desejamos fazer. Como dizia Tomás de Aquino: “O homem vê a ação, mas Deus vê a intenção.”

O que Jesus ensina, e é um ensino que condena a cada um de nós, é que nenhum homem pode considerar-se bom simplesmente porque observa regras e normas externas; só pode chamar-se a si mesmo um homem bom quando seu coração for puro. E apenas esse fato põe fim ao orgulho, e é a razão pela qual cada um de nós só podemos dizer: “Deus, tem misericórdia de mim, pecador.”

Estudo sobre Mateus 15:21-28

Esta passagem tem implicações muito sérias. Além de qualquer outra coisa, tem um interesse único: descreve a única oportunidade em que Jesus saiu da Palestina e do território judeu. O sentido supremo desta passagem é que preanuncia a propagação do evangelho a todo mundo; mostra-nos o princípio do fim de todas as barreiras.

Para Jesus se tratava de uma ocasião de retiro deliberado. O fim se aproximava, e antes do fim Jesus queria dispor de uns momentos de tranqüilidade para preparar-se. Não era tanto que se queria preparar a si mesmo, embora também tinha esse propósito, mas sim desejava dispor de algum tempo para ensinar e preparar a seus discípulos para o momento da cruz. Havia coisas que lhes devia dizer e que eles deviam entender. Na Palestina não havia nenhum lugar onde pudesse estar a sós; a qualquer lugar que fosse, as multidões iam a seu encontro. De maneira que se dirigiu ao norte através da Galileia até chegar à terra de Tiro e Sidom, habitada pelos fenícios. Aí, ao menos durante algum tempo, estaria a salvo da perversa hostilidade dos escribas e fariseus, e da perigosa popularidade entre o povo, porque nenhum judeu estaria disposto a segui-lo em território de gentios. Esta passagem mostra a Jesus procurando um período de tranqüilidade antes do alvoroço do fim. Não se trata em nenhum sentido de uma fuga de Jesus; é uma imagem de Jesus adquirindo forças e preparando-se, Ele e seus discípulos, para a luta final e decisiva que tinha pela frente.

Porém até nesse território estrangeiro Jesus não se veria livre do clamor da necessidade humana. Havia uma mulher que tinha uma filha gravemente doente. De algum modo esta mulher tinha ouvido a respeito das coisas maravilhosas que Jesus podia fazer, e seguiu a Jesus e a seus discípulos, rogando desesperadamente que a ajudassem. A princípio, Jesus parecia não lhe prestar atenção. Os discípulos estavam confundidos. “Dá-lhe o que pede”, diziam, “e livre-se dela.” A reação dos discípulos não era um sentimento de compaixão. Pelo contrário, para eles a mulher era um estorvo e queriam livrar-se dela o mais rápido possível. Aceder a um pedido para livrar-se de alguém que é, ou pode converter-se em um estorvo, é uma reação muito comum, mas é muito diferente do amor, da compaixão e da piedade cristãos.

Mas se apresentava um problema a Jesus. Não podemos duvidar por um instante de que sentia compaixão pela mulher. Mas era uma gentia. Não só era gentia, mas também pertencia aos cananeus e os cananeus eram inimigos ancestrais dos judeus. Nessa mesma época, ou não muito depois, Josefo podia escrever: “Dos fenícios, os de Tiro são os que têm os piores sentimentos contra nós.” Já vimos que se Jesus queria ter algum efeito devia limitar seus objetivos, como um general prudente. Tinha que começar pelos judeus; e aqui se encontrava com uma mulher gentia que clamava por misericórdia. Jesus só podia fazer uma coisa: devia despertar uma fé autêntica no coração dessa mulher.

De maneira que Jesus por fim se voltou para ela: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos.” Chamar cão a alguém era um insulto mortal e pejorativo. O judeu falava com uma arrogante insolência de “os cães gentios”, os “cães infiéis” e, mais adiante, dos “cães cristãos”. Naqueles dias os cães eram os sujos habitantes das ruas – animais fracos, selvagens, freqüentemente doentes. Mas devemos lembrar duas coisas. O tom e o olhar que se empregam para dizer algo fazem uma grande diferença. Inclusive algo duro pode dizer-se com um sorriso que desarma. Podemos chamar um amigo “vilão” ou “vadio” com um sorriso e um tom que lhe tira toda maldade e o enche de afeto. Podemos estar seguros de que o sorriso no rosto de Jesus e o tom de sua voz tirou toda a amargura e o insulto de suas palavras. Em segundo lugar, emprega o diminutivo de cães (kunaria) e os kunaria não eram os cães vagabundos mas os cães de madame, muito distintos dos vira-latas que assolavam as ruas e revolviam os montões de lixo. A mulher era grega, de rápida percepção e com o engenho dos gregos. “Sim”, respondeu, “porém os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos”. E os olhos de Jesus se iluminaram de alegria ao perceber uma fé tão indomável; e lhe outorgou a bênção e a saúde que tanto desejava.

Devemos assinalar certas coisas a respeito desta mulher.

(1) Primeiro e sobretudo, experimenta amor. Como dissera Bengel a respeito dela: “Fez sua a miséria de sua filha.” Podia ser pagã, mas em seu coração estava esse amor por sua filha que sempre é o reflexo do amor de Deus por suas criaturas. Foi o amor o que a fez aproximar-se desse estrangeiro; foi o amor o que a fez aceitar seu silêncio e continuar sua súplica. O amor foi o que a fez suportar seus aparentes rechaços. Foi o amor o que a fez capaz de ver a compaixão por trás das palavras de Jesus. A força impulsionadora do coração desta mulher era o amor; e não há nada mais forte e mais perto de Deus que o amor.

(2) Esta mulher tinha fé. (a) Era uma fé que cresceu em contato com Jesus. Começa chamando-o Filho de Davi; tratava-se de um título popular, político. Era um título que considerava Jesus como uma pessoa que fazia milagres grandes e poderosos, mas o via em termos de poder e glória terrenos. Aproximou-se para pedir um dom de alguém a quem considerava um homem grande e poderoso. Aproximou-se com uma espécie de superstição, como poderia ter-se aproximado de algum mago. Termina chamando Jesus de Senhor. É como se Jesus a tivesse obrigado a olhá-lo e a mulher tivesse visto nEle algo que não se podia expressar em termos terrenos, mas sim era nada menos que divino. Isso era justamente o que Jesus queria suscitar nela antes de conceder seu pedido. Queria que ela compreendesse que um pedido a um grande homem devia converter-se em uma oração a um Deus vivo. Podemos ver como cresce a fé desta mulher enquanto se depara com Cristo até que o vê, embora em forma distante, como o que é. (b) Era uma fé que adorava. Começou seguindo-o, terminou ajoelhada. Começou com uma petição, terminou com uma oração. Cada vez que nos aproximamos de Jesus devemos fazê-lo em primeiro lugar em adoração de sua majestade, e só depois devemos expressar nossa necessidade.

(3) Esta mulher tinha uma persistência inquebrantável. Não se deixava desalentar. Como já dissemos, há muita gente que ora porque não quer perder a oportunidade. Não acreditam na oração em forma autêntica; só sentem que pode ser que aconteça algo e não querem perder a oportunidade. Esta mulher se aproximou não só porque Jesus era o único que podia ajudá-la, mas sim porque era sua única esperança. Aproximou-se com uma esperança apaixonada, com um claro sentimento de necessidade e disposta a não sentir-se desalentada. Esta mulher tinha a qualidade supremamente efetiva da oração – estava absolutamente empenhada em obter o que queria. Para ela a oração não era uma forma ritual, era a expressão do desejo apaixonado de sua alma que de algum modo sentia que não podia, não devia e não tinha por que receber um não como resposta.

(4) Esta mulher tinha o dom da alegria. Estava em meio da aflição; apaixonadamente ansiosa; e entretanto, podia sorrir. Havia nela uma espécie de alegria cheia de luz. Deus ama a fé alegre, a fé em cujas almas sempre brilha a luz da esperança, a fé com um sorriso que pode iluminar a tristeza. A mulher se aproximou de Cristo com um amor audaz, com uma fé que cresceu até adorar aos pés do divino, com uma insistência inquebrantável que brotava de uma esperança invencível, com uma alegria que não aceitava o desalento. Essa é a fé que não pode deixar de receber uma resposta a suas orações.

Estudo sobre Mateus 15:29-39

Vimos que ao Jesus empreender sua viagem para o território dos fenícios, estava entrando em um período de afastamento e isolamento deliberados para poder preparar-se a si mesmo e a seus discípulos para os últimos dias que tinha pela frente. Uma das dificultados dos evangelhos é que não nos proporcionam nenhuma indicação precisa de datas e épocas, temos que descobri-las por nossa conta fazendo uso das insinuações que o relato pode nos dar. Quando analisamos estas insinuações, descobrimos que o período de isolamento de Jesus e seus discípulos foi muito mais prolongado do que poderíamos pensar se fizéssemos uma leitura superficial do relato. Quando Jesus alimentou os cinco mil (Mateus 14:15-21; Marcos 6:31-44) lemos que se sentaram sobre a relva verde (Mateus 14:19; Marcos 6:39). De maneira que era a primavera, porque nessa terra cálida o pasto não estava verde em nenhuma outra época. Depois de suas discussões com os escribas e fariseus se retirou aos distritos de Tiro e Sidom (Marcos 7:24; Mateus 15:21). Essa não era uma viagem muito curta se fosse feita a pé. A próxima indicação de tempo e lugar a temos em Marcos. Em Marcos 7:31 a tradução correta do grego é: “Saindo de Tiro, voltou através de Sidom até o mar da Galileia, passando pelas costas de Decápolis.” Era uma forma muito estranha de viajar. Sidom está ao norte de Tiro, o mar da Galileia está ao sul de Tiro e Decápolis era uma confederação de dez cidades gregas ao leste do mar da Galileia. Isso significa que Jesus foi para o Norte a fim de dirigir-se ao sul. É como se para chegar de um ponto da base de um triângulo até o outro passasse pelo vértice. É evidente que Jesus prolongou a viagem a propósito, a fim de permanecer o maior tempo possível com seus discípulos antes de sua última viagem a Jerusalém. Por último chegou a Decápolis onde, conforme vemos em Marcos (Marcos 7:31; 8:9), aconteceram os incidentes que se relatam em nossa passagem. Aqui encontramos nossa próxima alusão. Nesta oportunidade, quando se ordena à multidão que se sente, ela o faz sobre a terra (epi tenha gen), no chão. Estão no meio do verão e o pasto se queimou deixando a terra nua. Isso significa que esta viagem de Jesus por volta do Norte lhe tomou quase seis meses. Não sabemos nada a respeito do que aconteceu durante esses seis meses, mas podemos estar bem seguros de que foram os meses mais importantes na vida dos discípulos. Durante esse tempo Jesus lhes ensinou e os instruiu e abriu suas mentes à verdade. Devemos ter em mente que os discípulos passaram seis meses com Jesus, a sós, antes do momento crucial.

Muitos estudiosos consideram que a alimentação dos cinco mil e a dos quatro mil são versões diferentes de um mesmo incidente, mas não é assim. Como vimos a época é distinta; a primeira aconteceu na primavera, a segunda no verão. A multidão e o lugar são diferentes. A alimentação dos cinco mil nesta passagem aconteceu em Decápolis. O significado literal de Decápolis é dez cidades, e Decápolis era uma federação de dez cidades gregas livres. Nesta oportunidade haveria muitos gentios presentes, possivelmente mais gentios que judeus. Isso é o que explica a estranha frase do versículo 31: “Glorificavam ao Deus de Israel.” Para as multidões gentílicas tratava-se de uma demonstração do poder do Deus de Israel.

Também há outro elemento curioso que estabelece uma diferença. Na alimentação dos cinco mil as cestas que se empregaram para recolher as sobras se denominam kophinos; na dos quatro mil são chamadas sphurides. O kophinos era uma cesta de gargalo longo, em forma de garrafa que os judeus costumavam levar consigo para não ver-se obrigados a comer algo que haviam tocado mãos gentios e que portanto era impuro. O sphurides era algo muito mais parecido com uma cesta; podia chegar a entrar um homem nela e era o tipo de cesta que usavam os gentios.

O maravilhoso deste relato é que nestas curas e na alimentação dos famintos vemos que a misericórdia e a compaixão de Jesus se estendem aos gentios. Aqui nos encontramos com uma espécie de símbolo e premonição de que o plano de Deus não se limita aos judeus; os gentios também receberiam sua parte daquele que é o pão da vida.

Nesta passagem vemos com toda clareza a bondade e a absoluta generosidade de Jesus Cristo. Vemo-lo satisfazendo toda sorte de necessidades humanas.

(1) Vemo-lo curar a enfermidade física. Os coxos, os entrevados, os cegos e os surdos se prostram a seus pés e são curados. Jesus se preocupa em forma profunda pela dor corporal que existe no mundo; e aqueles que levam saúde e cura aos homens seguem cumprindo a obra de Jesus Cristo.

(2) Vemo-lo preocupado pelos que estão cansados. A multidão se sentia cansada e Jesus queria fortalecer suas pernas para um caminho longo e árduo. Jesus está profundamente preocupado pelos caminhantes do mundo, pelos que trabalham, por aqueles cujos olhos ou mãos estão cansados.

(3) Vemo-lo alimentando aos famintos. Vemo-lo dando tudo o que tinha para satisfazer a fome e a necessidade física. Jesus se preocupava tanto pelos corpos dos homens como por suas almas. Aqui vemos o poder e a compaixão de Deus que se preocupa em sair ao encontro das muitas necessidades da situação humana.

Ao escrever sobre esta passagem Edersheim expressa uma ideia muito bonita: assinala que nas três etapas sucessivas de seu ministério Jesus pôs fim a cada etapa com uma refeição que ofereceu a seu povo. A primeira foi a alimentação dos cinco mil. Esta se dá ao final de seu ministério na Galileia, porque depois disso Jesus não voltaria a ensinar, pregar ou curar na Galileia. Em segundo lugar, encontramo-nos com esta alimentação dos quatro mil. Esta se dá ao final de seu breve ministério entre os gentios, para além dos limites da Palestina – primeiro nos distritos de Tiro e Sidom e logo em Decápolis. E a terceira e última foi a Santa Ceia em Jerusalém, quando Jesus chegou à última etapa dos dias de sua carne entre os homens.

Trata-se sem dúvida de uma noção muito bonita. Jesus sempre deixava os homens com forças para o caminho. Sempre reunia os homens a seu redor para alimentá-los com o pão da vida. Sempre se entregava a si mesmo antes de continuar. E mesmo agora se aproxima de nós, oferecendo o pão que satisfaz a fome imortal da alma humana, com cuja força poderemos nos manter todos os dias de nossa vida.

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