Estudo sobre Mateus 3:1-17

Mateus 3

Antes de passar ao terceiro capítulo do Mateus, há um assunto que nos convém examinar. O segundo capítulo do Mateus conclui quando Jesus é ainda um menino. O terceiro capítulo se abre quando Jesus já é um homem de trinta anos (cf. Lucas 3:23). Quer dizer, entre os dois capítulos há um parêntese de trinta anos silenciosos. A que se deve isto? O que ocorreu durante esses trinta anos? Jesus veio para ser o Salvador do mundo e durante trinta anos nunca viajou muito mais longe que as últimas casas do povo em que vivia, na Palestina, exceto para a Páscoa, quando seus pais o levavam a Jerusalém. Morreu quando tinha trinta e três anos, e desses trinta e três anos trinta os passou ignorado em Nazaré. Para dizer o de outra maneira, dez onzeavos da vida de Jesus transcorreram no Nazaré. O que ocorreu durante esse tempo?

(1) Jesus cresceu, até chegar a sua idade adulta, em um bom lar; não pode haver melhor começo para uma vida útil. J. S. Blackie, o famoso mestre de Edimburgo, disse em certa oportunidade, publicamente: "Quero dar graças a Deus pelas boas ações, por assim dizer, que herdei de meus pais para me iniciar no negócio da vida." George Herbert disse em certa oportunidade: "Uma boa mãe vale como cem bons professores." De maneira que Jesus passou esses anos silenciosos, mas modeladores, no círculo de um lar modelo.

(2) Jesus cumpria os deveres de um primogênito. É muito provável que José tenha morrido antes que seus filhos crescessem. Possivelmente tenha sido bem mais velho que Maria quando se casaram. Na história da festa de bodas em Caná da Galiléia José não é mencionado, embora Maria estivesse presente. É razoável pensar que José tinha morrido. De modo que Jesus deve haver-se convertido no carpinteiro do povo, em Nazaré, para sustentar a sua mãe e a seus irmãos mais novos. O mundo o estava chamando, e entretanto, acima de tudo cumpriu suas obrigações para com sua mãe, seus irmãos e seu lar. Quando morreu a mãe do Sir James Barrie este escreveu: "Olho ao passado, e não posso ver nem o menor cabo que tenha ficado sem atar." Esta é uma razão de profunda felicidade. O mundo está construído sobre a contribuição daqueles que aceitam sem vacilação nem egoísmo os deveres mais singelos.

Um dos mais destacados exemplos desta atitude é o grande investigador médico Sir James Simpson, descobridor do clorofórmio. Provinha de um lar humilde. Um dia sua mãe o sentou sobre seus joelhos e se pôs a remendar suas meias. Quando terminou, contemplou a tarefa que acabava de realizar com mão perita e disse: "Meu Jaime, quando sua mãe morrer, nunca esqueça de que ela era uma grande costureira." Jaime era o gênio da família, e todos sabiam. Esperavam grandes coisas dele. Seu irmão Sandy disse: "Eu sentia que algum dia ele chegaria a ser um grande homem." Por esse pressentimento, sem ciúmes e de boa disposição, seus irmãos trabalharam em uma padaria e em outros empregos para que Jaime pudesse ir à universidade e ter uma oportunidade de destacar-se. Não teria chegado a haver um Sir James Simpson se não fosse por essa família disposta a cumprir com amor as tarefas mais cotidianas, para que o irmão brilhante pudesse pôr a serviço do mundo sua capacidade incomum. Jesus é o grande exemplo de todos os que aceitam cumprir com devoção as tarefas mais singelas do lar.

(3) Jesus estava aprendendo o que significa ser operário. Estava aprendendo a ganhar a vida, a economizar para comprar roupa e mantimentos, e às vezes, possivelmente, poder pagar para si algum prazer incomum; estava aprendendo a atender uma clientela nem sempre fácil de satisfazer e nem sempre pontual no pagamento de suas dívidas. Se Jesus algum dia quisesse ajudar aos homens, devia conhecer como era a vida dos homens. Não veio para viver uma existência protegida e fácil: veio para viver como qualquer homem comum. Devia fazê-lo, para poder chegar alguma vez a compreender o homem comum.

Há uma famosa anedota sobre Maria Antonieta, a rainha da França, na época em que se preparava na França o que seria a tormenta da Revolução. O povo morria de fome e constantemente se produziam rebeliões. A rainha perguntou qual era a causa de todos os problemas e lhe disseram que não tinham pão. "Se não tiverem pão", respondeu Maria Antonieta, "que comam bolos." A idéia de uma vida sem abundância não entrava em seu panorama. Não podia compreender. Jesus trabalhou em Nazaré durante todos seus anos de silêncio para saber como era a vida, e assim, compreendendo, poder ajudar.

(4) Jesus estava cumprindo fielmente as suas responsabilidades menores antes de receber a sua grande responsabilidade. Podemos imaginar que se não tivesse completado suas responsabilidades menores provavelmente nunca lhe seria confiado a responsabilidade maior de ser Salvador do mundo. Foi fiel no pouco para poder receber o muito. Nunca se deve esquecer que no cumprimento cotidiano de nossas tarefas mais singelas é como construímos uma vida de grandeza ou arruinamos nossas possibilidades, como ganhamos ou perdemos a coroa.

Cf. Gênero Literário do Evangelho de Mateus
Cf. Teologia do Evangelho de Mateus

Mateus 3:1-6 O aparecimento de João foi como o ressoar repentino da voz de Deus. Naquela época os judeus eram dolorosamente conscientes de que os profetas já não falavam. Dizia-se que durante quatrocentos anos não tinha havido profeta algum. Ao longo de vários séculos a voz da profecia se manteve calada. Tal como eles mesmos diziam: "Não havia voz, nem quem respondesse." Mas em João voltou a fazer-se ouvir a voz profética.

Quais eram as características de João e sua mensagem?

(1) Denunciava intrepidamente o mal em qualquer lugar que o encontrasse. Se o rei Herodes pecava, contraindo um casamento ilegal e pecaminoso, João o reprovava. Se os saduceus e os fariseus, dirigentes da ortodoxia religiosa daquela época, estavam afundados em um formalismo ritualista, João não duvidava em dizer-lhe diretamente. Se as pessoas comuns viviam afastados de Deus, João o jogava na cara. Em qualquer lugar que João visse o mal no Estado, na Igreja, na multidão intrepidamente, ele o denunciava. Era como uma luz acesa em algum lugar escuro: era como um vento de Deus que varria todo o país.

Conta-se de um famoso jornalista que, apesar de ser famoso, nunca cumpriu a fundo os deveres de sua profissão, diz-se que provavelmente nada conseguia perturbá-lo. Ainda há lugar, na mensagem cristã, para a advertência e a denúncia. "A verdade", disse Diógenes, "é como a luz nos olhos irritados." E acrescenta: "Quem nunca ofendeu a ninguém jamais fez bem a ninguém." Possivelmente tenha havido momentos em que a Igreja foi muito cuidadosa e procurou não ofender. Há ocasiões em que já não há lugar para a suave amabilidade e chega o momento da acerba recriminação.

(2) Convocava os homens à justiça, e o fazia com um profundo sentimento de urgência. A mensagem do João não era uma mera denúncia negativa. Era uma apresentação positiva das exigências morais de Deus. Não somente denunciava a conduta dos homens, pelo que tinham feito, mas sim os convocava a fazer o que deviam fazer. Não somente os condenava pelo que eram, mas sim os desafiava a ser o que deviam ser. Era como uma voz que chamava os homens às coisas mais elevadas. Não se limitava à condenação do mal, mas sim punha diante dos homens o bem. É possível que a Igreja tenha passado por momentos nos quais ficou preocupada principalmente em dizer aos homens quais eram as coisas que não deviam fazer, descuidando sua missão de colocar ante eles os mais altos ideais cristãos.

(3) João vinha de Deus. Sua procedência era o deserto. Achegou-se aos homens só depois de ter passado anos de preparação sob a orientação de Deus. Tal como disse Alexander Maclaren: "João saltou na arena, por assim dizer, plenamente desenvolvido e com a armadura completa." Veio com uma mensagem de parte de Deus e não com uma opinião pessoal dela. Antes de falar com os homens tinha passado muito tempo em companhia de Deus. O pregador, o docente que fala com voz profética, sempre é aquele que vem à presença dos homens, vindo da presença de Deus.

(4) João apontava para além de si mesmo. Não somente era uma luz que iluminava o mal, uma voz que reprovava o pecado, mas além disso, um sinal indicador do caminho para Deus. Não desejava que os homens se fixassem nele, seu objetivo era prepará-los para Aquele que havia de vir. Uma das crenças judias da época era que Elias voltaria antes da vinda do Messias, e que seria o arauto do Rei que viria. "Eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível Dia do SENHOR" (Malaquias 4:5). João usava um vestido de pele de camelo e se cingia com um cinturão de couro. Este traje reproduz exatamente o que se descreve como a roupa de Elias em 2 Reis 1:8. Mateus o relaciona com uma profecia de Isaías (Isaías 40:3).

Na antiguidade, no oriente, os caminhos eram muito ruins. Há um antigo provérbio que diz: "Há três estados miseráveis: estar doente, passar fome e viajar." Antes que um viajante empreendesse seu caminho recebia a recomendação de "pagar todas suas dívidas, fazer provisão para os que dependiam dele, oferecer presentes a seus amigos e parentes no momento da partida, devolver tudo o que tivesse recebido em custódia, levar consigo dinheiro e a melhor disposição para viajar e despedir-se de todos". Os caminhos mais frequentados não eram mais que rastros. Não eram caminhos consolidados, porque a terra na Palestina é dura o suficiente para suportar o trânsito de burros e mulas, bois e carretas. Qualquer viagem por um daqueles caminhos era uma aventura e certamente uma circunstância que na medida do possível devia evitar-se. Havia uns poucos caminhos pavimentados, feitos pelo homem. Josefo, por exemplo, diz-nos que Salomão mandou construir uma vereda de basalto preto em todos os caminhos que levavam a Jerusalém, para que a viagem fosse menos penosa aos peregrinos, e "para manifestar a grandeza de suas riquezas e governo".

Todos estes caminhos pavimentados, feitos pelo homem, eram construídos por ordem do rei e para uso do rei, e por isso eram chamados de "caminhos reais". A reparação só era feita quando o rei precisava fazer uma viagem por eles. Antes que chegar, o rei enviava uma mensagem aos habitantes para que preparassem o caminho para o rei.

João estava preparando o caminho para o rei. O pregador e o docente de voz profética não se destaca a si mesmo, mas a Deus. Seu objetivo não é fazer com que seus semelhantes se dêem conta de quão inteligente ele é, mas sim percebam a majestade de Deus. O verdadeiro pregador é o que fica obliterado pela mensagem.

Os homens reconheceram João como um profeta, embora durante muitos anos não se escutou voz profética alguma, porque era uma luz que iluminava as trevas dos homens e punha de manifesto suas más ações, uma voz que convocava os homens à justiça, um sinal que dirigia a atenção dos homens para Deus, e porque descansava sobre ele essa autoridade incontestável que possuem aqueles que vêm falar aos homens vindos da presença de Deus.

Cf. Escritor do Evangelho de Mateus
Cf. Conteúdo do Evangelho de Mateus

Mateus 3:7-12 Na mensagem de João há, ao mesmo tempo, uma ameaça e uma promessa. Toda esta passagem está cheia de imagens muito vívidas. João chama os fariseus e saduceus "geração de víboras", e lhes pergunta quem os aconselhou a fugirem da ira vindoura. Aqui entram em jogo uma de duas imagens. João conhecia o deserto. Em alguns lugares, no deserto, há matas muito secas de pasto, e arbustos espinhosos miúdos, quebradiços pela falta de umidade. Às vezes se produzem incêndios. Quando isto ocorre o fogo arrasa o pasto e os arbustos como um rio de fogo, porque estão tão secos como isca. Sobre o fronte do incêndio fogem os escorpiões, as serpentes e todas as outras animálias que encontravam refúgio no monte. São expulsos de suas tocas pelas chamas, e escapam para salvar suas vidas. Mas possivelmente haja outra imagem. Em todo campo semeado há uma boa quantidade de pequenos animais: ratos de campo, coelhos, lebres, galináceos. Quando se faz a colheita toda esta fauna deve fugir, porque seus ninhos e covas ficam a descoberto e não têm onde refugiar-se. João concebe sua tarefa nos termos destas imagens. Se os fariseus e os saduceus vêm para receber o batismo, são como as animálias que fogem para salvar sua vida quando se produz um incêndio no monte ou aparece o segador com sua foice.

E os adverte que não adiantará nada protestarem sua ascendência abraâmica. Para o judeu ortodoxo esta era uma afirmação incrível. Para ele Abraão era único. Tão único era no favor que tinha merecido de Deus por sua bondade, que seus méritos não somente bastavam para estabelecer sua própria justiça, mas também a de todos os seus descendentes. Tinha estabelecido um "tesouro de méritos" que as necessidades de todos seus descendentes não poderiam esgotar. De maneira que os judeus acreditavam que, pelo fato de ser judeus, e não por nenhum mérito próprio que tivessem podido acumular, tinham a bem-aventurança eterna assegurada. Diziam que "todos os israelitas têm porte no mundo vindouro". E falavam dos "méritos libertadores dos pais". Acreditavam que Abraão estava sentado à porta do Geena (Inferno) para evitar a entrada de qualquer judeu que tivesse sido consignado a ele e seus terrores. Acreditavam que graças aos méritos de Abraão os navios israelitas navegavam pelos mares sem sofrer percalços: que graças aos méritos de Abraão a chuva descia para fecundar a terra; que pelos méritos de Abraão Moisés pôde entrar no céu e receber a Lei; que pelos méritos de Abraão Davi foi escutado. Serviam até para justificar os maus. "Se seus filhos", diziam a respeito de Abraão, "tivessem sido corpos sem vida, sem veias nem ossos, seus méritos os teriam beneficiado". É esta crença que João critica. Possivelmente os judeus a levaram a um extremo que não tem paralelos na história, mas sempre existe o perigo de pretender viver graças aos méritos espirituais do passado. Uma era decadente não pode pretender justificar-se em nome de um passado heróico. Um filho pecador não pode aspirar à salvação em nome da santidade de seu pai.

E então, João retorna mais uma vez à imagem da colheita. Ao terminar a temporada aquele que cuidava da vinha examinava todas as plantas, e separando as que não tinham dado fruto, arrancava-as do chão, porque somente serviam para ocupar lugar. A inutilidade sempre conduz ao desastre. O ser humano que não é útil nem para Deus nem para seus semelhantes constitui um sério perigo e está condenado.

Mas depois da ameaça, na mensagem de João, vinha a promessa que também incluía uma ameaça. Como dissemos, João apontava para além de si mesmo, Àquele que havia de vir. Naquele momento desfrutava de uma grande reputação e sua influência era enorme. Entretanto, dizia que não era digno sequer de desatar as sandálias dAquele que havia de vir – um dever de escravo. A atitude de João era negar-se a si mesmo e não atribuir-se importância. Sua única importância, tal como ele a entendia, era servir de indicador que anunciava a vinda dAquele que havia de vir.

Disse que Aquele que havia de vir os batizaria com o Espírito e com fogo.

Ao longo de toda sua história os judeus tinham esperado a vinda do Espírito de Deus. Ezequiel escutou pela boca de Deus as seguintes palavras: "Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. "Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis" (Ezequiel 36:26-27). "Porei em vós o meu Espírito, e vivereis" (Ezequiel 37:14). "Já não esconderei deles o rosto, pois derramarei o meu Espírito sobre a casa de Israel, diz o SENHOR Deus" (Ezequiel 39:29). "Porque derramarei água sobre o sedento e torrentes, sobre a terra seca; derramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade e a minha bênção" (Isaías 44:3). "E acontecerá, depois, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne" (Joel 2:28).

Qual, então, é o dom e a obra deste Espírito de Deus? Ao procurar dar resposta a esta pergunta devemos lembrar que corresponde fazê-lo em termos hebraicos. João era judeu, e estava falando com judeus. Não pensa nem fala em termos da doutrina cristã do Espírito Santo, mas sim de acordo com a doutrina judaica do Espírito.

(1) A palavra hebreia que significa espírito é ruach, e esta, como pneuma, em grego, não significa somente espírito. Também significa alento. O alento é a vida, e portanto a promessa do Espírito é uma promessa de vida. O Espírito de Deus insufla a vida dEle no homem. Quando o Espírito de Deus entra em alguém, desaparecem a fadiga e a derrota que deterioram e empalidecem a vida e uma corrente de nova vida penetra em nós.

(2) Esta palavra ruach não somente significa alento mas também vento. É o termo que designa o vento da tormenta, esse forte vento que Elias escutou uma vez. Vento significa poder. O vento arrasta o navio em alto mar e desarraiga a árvore que cresce no deserto. O vento possui um poder irresistível. O Espírito de Deus é o Espírito de poder. Quando o Espírito de Deus penetra na vida de um homem, sua fraqueza é coberta com o poder de Deus. É capacitado a fazer o impossível, a enfrentar o que ninguém enfrenta, a suportar o insuportável. Dissipa-se a frustração, chega a vitória.

(3) O Espírito de Deus está relacionado com a obra criadora. O Espírito de Deus é Aquele que se movia sobre a face do abismo e converteu o caos num cosmos, converteu a desordem em ordem e deu forma ao universo a partir das brumas incriadas. O Espírito de Deus nos pode recriar. Quando o Espírito de Deus entra numa vida humana a desordem de nossa natureza humana converte-se na ordem de Deus; nossas vidas descontroladas, desordenadas, são modeladas pelo Espírito até que elas fiquem em sintonia com a perfeita harmonia de Deus.

(4) Os judeus atribuíam certas funções especiais ao Espírito. O Espírito trazia a verdade de Deus aos homens. É o Espírito quem revela a verdade de Deus aos homens. Cada nova descoberta, em qualquer campo do pensamento, é um dom do Espírito. O Espírito penetra na mente de um homem e converte suas incertezas humanas em certezas, transforma sua ignorância humana em conhecimento divino.

(5) O Espírito capacita os homens a reconhecerem a verdade de Deus quando esta se apresenta. Quando o Espírito entra em nossos corações nossos olhos são abertos. São eliminados os preconceitos que nos cegavam. Desaparece a vontade de auto-afirmação que nos entrevava. O Espírito põe o homem em condições de ver.

Tais são os dons do Espírito e, do ponto de vista de João, eram esses os dons que Aquele que havia de vir traria à humanidade.

Na mensagem do João há uma palavra e uma imagem que combinam a promessa com a ameaça. João diz que o batismo daquele que havia de vir seria um batismo de fogo. O conceito de um batismo de fogo inclui pelo menos três ideias.

(1) Em primeiro lugar vem a ideia de iluminação. A labareda envia uma luz através da noite, que ilumina até os rincões mais escuros. A chama do farol guia o marinheiro ao porto e ao viajante a seu destino. No fogo não há somente destruição, há luz e guia. Jesus é a luz do farol que guia os homens à verdade e a seu verdadeiro lar junto a Deus.

(2) Existe a ideia de calor. Houve um grande homem notável por sua extraordinária bondade, que era descrito como alguém que ia acendendo fogos nas habitações frias. Quando Jesus entra na vida de um homem, acende em seu coração o calor do amor a Deus e a seus semelhantes. O cristianismo é sempre a religião do coração inflamado.

(3) Existe a ideia de purificação. Neste sentido a purificação envolve destruição. O fogo purificador destrói o falso e deixa somente o verdadeiro. A chama tempera, fortalece e purifica o metal. Quando Cristo entra no coração de um homem, seu fogo purificador elimina a escória do mal. Às vezes isto ocorre mediante experiências dolorosas, mas se alguém acredita que nas experiências de sua vida Deus está operando todas as coisas para seu bem, seu caráter surgirá dos transes mais difíceis, limpo e purificado, até que, sendo puro de coração, possa ver deus.

De maneira que a palavra "fogo" contém as ideias da iluminação, o calor e a purificação da entrada de Jesus Cristo no coração do homem. Mas também há outra imagem que contém os elementos de promessa e de ameaça – a do aventador. Trata-se da grande forquilha de madeira com a qual se jogava ao ar o grão para que o vento se encarregasse de separá-lo da palha. O grão era recolhido nos celeiros e toda a palha que ficava no lugar era usada como combustível.

A vinda de Cristo necessariamente envolve uma separação. Os homens podem rechaçá-lo ou aceitá-lo, Quando são confrontados por Ele, estão ante uma escolha que não podem evitar. Ou se está a favor dEle ou contra Ele. E esta escolha é a que determina o destino de cada ser humano. Os homens são separados em dois grupos segundo sua reação diante de Jesus Cristo.

No cristianismo não há forma de evitar a suprema escolha eterna. No parque da cidade do Bedford, na Inglaterra, John Bunyan escutou uma voz que o fez erguer-se de um salto e o obrigou a enfrentar a eternidade: "Abandonará seus pecados e irá ao céu, ou ficará com seus pecados e irá ao inferno?" Em última análise essa é a escolha que nenhum ser humano pode evitar.

Cf. Esboço e Sumário do Evangelho de Mateus
Cf. Características Judaicas do Evangelho de Mateus

Em toda a pregação de João havia uma demanda fundamental, e esta era: "Arrependei-vos!" (Estudo sobre Mateus 3:2). Esta era também a existência fundamental de Jesus, porque este iniciou seu ministério pregando o arrependimento e a fé no evangelho (Marcos 1:15). Fica evidente que convém deter-nos para analisar muito bem o que significa este arrependimento, e como se deve interpretar esta exigência básica, tanto do Rei como de seu arauto.

Deve destacar-se que tanto João como Jesus usam a palavra "arrependimento" sem explicar seu significado. Usavam-na com a segurança de que seus ouvintes saberiam perfeitamente o que queria dizer.

Vejamos qual é o ensino judaico a respeito do arrependimento. Para o judeu o arrependimento era um dos elementos fundamentais da fé e de toda relação com Deus. G. F. Moore escreve:

"O arrependimento é a condição única, mas inexorável, do perdão divino e da restauração do homem a seu favor; o perdão e o favor divino nunca são negados a quem se apresenta ante Deus genuinamente arrependidos." E adiciona: "Uma das doutrinas cardeais do judaísmo é que Deus remete plenamente e de maneira gratuita os pecados do penitente."

Os rabinos diziam: "Grande é o arrependimento porque traz a saúde ao mundo; grande é o arrependimento porque chega até o Trono da Glória." C. G. Montefiore escreveu: "O arrependimento é o grande elo mediador entre Deus e o homem." A lei, segundo o ensino dos rabinos, teria sido criada dois mil anos antes do universo, mas o arrependimento é uma das seis coisas que foram criadas até antes da Lei. As seis eram: o arrependimento, o paraíso, o inferno, o glorioso Trono de Deus, o Templo celestial e o nome do Messias. Diziam: "Um homem pode arrojar uma flecha que chegue a várias centenas de metros, mas o arrependimento chega até o Trono de Deus." Há uma famosa passagem rabínica que coloca o arrependimento no primeiro de todos os lugares. "Quem é como Deus um mestre dos pecadores, que lhes ensine o arrependimento?" Demandavam à Sabedoria "Qual será o castigo do pecador?" e esta respondia: "O mal perseguirá os pecadores" (Provérbios 13:21). Demandavam à Profecia e esta respondia: "A alma que pecar, essa morrerá" (Ezequiel 18:4). Demandavam à Lei e esta respondia: "(o sacrifício) será aceito para expiação dela" (Levítico 1:4). Demandavam a Deus e este respondia: "Que se arrependa e obterá assim sua expiação. Meus filhos, o que outra coisa exijo de vós senão que me busquem e vivam?" De maneira que para o judeu o único caminho de volta a Deus é o arrependimento.

A palavra hebraica que se usava como equivalente de "arrependimento" é em si extremamente interessante. É a palavra teshubá, que é o substantivo correspondente ao verbo shub que significa "dar a volta". O arrependimento é o rosto dar volta ao mal e voltar-se para Deus. G. F. Moore escreve: "O significado primitivo e transparente do arrependimento, no judaísmo, envolve sempre uma transformação da atitude do indivíduo a respeito de Deus. Quanto à conduta do indivíduo ou do povo que se arrepende, a consequência direta do arrependimento é a reforma moral e religiosa."

C. G. Montefiore escreve: "Para os rabinos a essência do arrependimento consiste em uma mudança de atitude tão radical que inevitavelmente dele virá uma mudança na vida e no comportamento." Maimonides, o grande erudito judeu medieval, define o arrependimento da seguinte maneira: "O que é o arrependimento? O arrependimento significa que o pecador abandona seu pecado e o elimina de seus pensamentos e resolve que jamais voltará a incorrer nele, tal como está escrito: 'Deixe o ímpio seu caminho e o homem iníquo seus pensamentos'."

G. F. Moore, de maneira muito interessante e valiosa, observa que com a só exceção das palavras que copiamos entre parêntese a definição de arrependimento da Confissão do Westminster seria perfeitamente aceitável para um judeu: "O arrependimento para a vida é uma graça salvadora, mediante a qual o pecador, a partir de uma autêntica convicção de pecado, e da percepção da misericórdia de Deus (em Cristo), volta-se de seu pecado para Deus, com dor e tristeza por seu pecado, ao que chegou a odiar, com o propósito pleno de viver em uma nova obediência, coisa que põe por obra." Uma e outra vez a Bíblia fala deste apartar-se do mal e voltar-se para Deus. Ezequiel o diz da seguinte maneira: "Vivo eu, diz o Senhor JEOVÁ, que não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho e viva" (Ezeq. 33:11). Diz Jeremias: “Converte-me, e serei convertido, porque tu és o SENHOR, meu Deus.” (Jeremias 31:18). Diz Oséias: “Volta, ó Israel, para o SENHOR, teu Deus, porque, pelos teus pecados, estás caído. Tende convosco palavras de arrependimento e convertei-vos ao SENHOR; dizei-lhe: Perdoa toda iniquidade, aceita o que é bom e, em vez de novilhos, os sacrifícios dos nossos lábios.” (Oséias 14:1-2).

A partir de tudo isto fica claro que no judaísmo o arrependimento incluía uma exigência ética. É apartar-se do mal voltando-se para Deus, com a correspondente mudança no comportamento, na ação. João estava plenamente inscrito na tradição de seu povo quando exigia que seus ouvintes trouxessem frutos dignos do arrependimento. Há uma bonita oração da sinagoga judia que diz: "Faze que voltemos, Pai, à Tua Lei; aproxima-nos, Rei, a Teu serviço; traze-nos de volta em perfeito arrependimento até Tua presença. Bendito sejas Tu, ó Senhor, que te deleitas com o arrependimento." Mas este arrependimento devia manifestar-se em uma autêntica transformação da vida.

Um rabino, comentando Jonas 3:10, escreveu: "Meus irmãos, não se diz dos ninivitas que Deus tenha visto seu cilício e jejum, mas sim viu suas obras, e deste modo interpretou que se voltaram de seus caminhos pecaminosos." Os rabinos diziam: "Não sejam como os parvos, que quando pecam trazem sacrifício ao templo, mas não se arrependem. Se alguém disser: Pecarei e me arrependerei; pecarei e me arrependerei, não lhe será permitido arrepender-se." Uma lista de cinco pecadores imperdoáveis incluía "os que pecam para arrepender-se, e os que se arrependem muito e voltam a pecar novamente." Diziam: "Se a pessoa tiver algo imundo em suas mãos, não bastarão as águas de todos os mares do mundo para lavar-lhe mas se arroja a coisa imunda, com um pouco de água bastará." Os mestres judeus falavam do que se denominava, "as nove normas do arrependimento", ou seja as nove necessidades de um autêntico arrependimento. Encontravam-nas na forma de mandamentos em Isaías 1:16, 17: “Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas.”

O filho do Sirach escreve no Eclesiástico:

"Não diga, pequei, e o que ocorreu comigo? Porque o Senhor é longânimo. Não confie estupidamente na expiação enquanto segue adicionando pecado sobre pecado, e não diga sua compaixão é grande, Ele perdoará a multidão de meus pecados; porque Ele é um Deus de misericórdia e de ira, e sua ira descansa sobre os pecadores. Não demore a voltar-se para Senhor, não vá adiando de dia em dia" (Eclesiástico 5:4-7).

E volta a escrever, em outro lugar:

"O homem que se lava para purificar-se do contato com um corpo morto e depois o volta a tocar, que benefício obtém de sua purificação? Deste modo ocorre com um homem que faz jejum por seus pecados e continua pecando nas mesmas coisas; quem ouvirá suas orações, e que razão havia para que se afligisse com penitências?"
(Eclesiástico 31:30-31).

O judeu sustentava que o verdadeiro arrependimento tem como resultado não somente um sentimento de tristeza, mas uma mudança na vida e o mesmo sustentam os cristãos. O judeu experimentava um santo horror ante a ideia de negociar com Deus por sua misericórdia e o mesmo os cristãos. O judeu sustentava que o autêntico arrependimento deve produzir frutos que demonstravam a realidade do arrependimento e o mesmo os cristãos.

Mas os judeus tinham outras coisas a dizer sobre o tema do arrependimento, e devemos prosseguir com elas.

Há uma nota quase apavorante na demanda ética que envolve a ideia judia do arrependimento, mas há outros aspectos desta que são extremamente reconfortantes. Sempre é possível arrepender-se. "O arrependimento", diziam, "é como o mar, qualquer um pode banhar-se nele a qualquer hora." Possivelmente haja momentos em que os portais da oração estão fechados, mas sempre pode transitar-se pelo caminho do arrependimento. Ninguém pode jamais fechar as portas do arrependimento.


O arrependimento é completamente essencial. Conta-se de uma espécie de discussão que Abraão manteve com Deus. "Não podes puxar os dois extremos da corda ao mesmo tempo", disse Abraão a Deus. "Se desejas uma estrita justiça, o mundo não a pode suportar. Se desejas preservar o universo que Tu mesmo criaste, a justiça perfeita é impossível." O mundo não pode seguir existindo a não ser graças à misericórdia de Deus e a porta sempre aberta do arrependimento. Se não houvesse outra coisa senão a justiça de Deus, esta significaria o fim de todos os homens e de todas as coisas. Tão essencial é o arrependimento, que para fazê-lo possível Deus mesmo cancela suas demandas: "Bem amado é o arrependimento aos olhos de Deus, porque por seu amor cancela ele suas próprias palavras." A ameaça da destruição que pende sobre o pecador é cancelada mediante a aceitação do arrependimento de seus pecados.

O arrependimento dura tanto quanto a vida. Enquanto dura a vida, dura a possibilidade do arrependimento. "A mão de Deus se estira por baixo das asas da carruagem celestial, para arrebatar o penitente das garras da justiça." O rabino Simeão Ben Yohl disse:


"Se um homem tiver sido absolutamente justo todos os dias de sua vida mas se rebela no último dia, destrói toda sua obra anterior, porque está escrito: ‘A justiça do justo não o livrará no dia da sua transgressão’ (Ezequiel 33:12). Mas se um homem tiver sido absolutamente mau todos os dias de sua vida e no último dia se volta de sua maldade, Deus o receberá, porque está escrito, ‘a impiedade do ímpio não lhe será estorvo no dia que se voltar de sua impiedade’ (idem). ‘Muitos’, diziam, ‘vão ao céu depois de anos e anos de justiça, mas outros ganham em uma hora.’ Como diria o poeta, referindo-se ao homem que obtém a misericórdia de Deus no instante de sua morte: ‘Entre os arreios e o solo, enquanto caía, procurei a misericórdia e foi minha.’ ”

Tal é a misericórdia que aceita até o arrependimento secreto. O rabino Eleazar disse:

“O modo de ser do mundo é que se um homem tiver insultado a outro publicamente e depois de um tempo procura reconciliar-se com ele, o ofendido lhe diz: ‘Você me insultou em público e agora quer que nos reconciliemos em privado e isso não pode ser. Vá e busque aqueles em cuja presença me insultou e então sim me reconciliarei com você.’ Mas não é assim com Deus. Qualquer um pode ficar de pé em um estrado e blasfemar, em praça pública, e o Santo lhe dirá: ‘Arrependa-te, entre nós dois, e eu te receberei.’ A misericórdia de Deus se estende até àquele homem tão envergonhado por sua ofensa que somente pode confessar a Deus.”

Deus não se esquece de nada, porque é Deus, mas tal é sua misericórdia que não somente perdoa o pecado do penitente mas sim, embora pareça incrível, esquece-o: "Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniquidade e te esqueces da transgressão do restante da tua herança?" (Miq. 7:18). "Retraíste toda a tua cólera, do furor da tua ira te desviaste" (Salmo 85:3, TB). O homem poderá talvez perdoar, mas esquecer a ofensa é algo que só se pode esperar de Deus.

O mais maravilhoso de tudo é que Deus percorre Ele mesmo a metade do caminho, e às vezes mais ainda, para sair ao encontro do pecador penitente: "Volta-te tanto como possas, e eu farei o resto do caminho." Os rabinos, em seus melhores momentos, perceberam a imagem do pai que, na magnificência de seu amor, corre para sair ao encontro do filho pródigo.

Entretanto, até recordando toda esta misericórdia, segue sendo verdade que no anterior arrependimento é necessária a reparação do mal cometido, quando esta é factível. Os rabinos diziam: "A ofensa deve ser paga, e o perdão procurado e recebido. O verdadeiro penitente é o que volta a ter a oportunidade de cometer o mesmo pecado, nas mesmas circunstâncias, e não o faz." Os rabinos sublinham repetidas vezes a importância de restabelecer as relações humanas cada vez que as tem quebrado.

Há uma passagem rabínica extremamente curiosa: "Aquele que é bom em relação ao céu e a seus próximos é um bom zadik (Um zadik é um justo). Aquele que é bom em relação ao céu, mas não em relação a seus próximos, é um mau zadik. Aquele que é mau em relação ao céu e de seu próximos é um mau pecador. Aquele que é mau em relação ao céu, mas é bom em relação a seu próximo, não é um mau pecador." O fato de que a reparação seja tão necessária faz com que o pior pecador seja o que ensina a outros a pecar, porque não pode oferecer reparação por sua maldade, desde que não sabe até onde chegaram os efeitos de seu mau exemplo e em quantos chegou a influir.

Mas não somente se necessita que haja reparação para que o arrependimento seja autêntico, também deve haver confissão. Em repetidas passagens bíblicas encontramos esta exigência. "O homem ou a mulher que cometer alguns dos pecados com que os homens prevaricam contra Jeová e delinquem, aquela pessoa confessará o pecado que cometeu" (Números 5:6-7). "Aquele que encobre seus pecados não prosperará, mas o que os confessa e se aparta, alcança misericórdia." (Provérbios 28:13). “Confessei-te o meu pecado e a minha iniquidade não mais ocultei. Disse: confessarei ao SENHOR as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniquidade do meu pecado.” (Salmo 32:5). O homem que pretende ser inocente e se nega a admitir que pecou é o que está condenado (Jer. 2:35). Maimonides sugere uma fórmula que qualquer um pode usar para confessar seus pecados! "Ó Deus, pequei, cometi iniquidade, incorri em transgressões contra ti, e tenho feito tal e qual coisa. Estou entristecido e envergonhado por minhas ações, e nunca voltarei a incorrer nelas." O verdadeiro arrependimento requer a humildade que admite os pecados e os confessa.

Não há caso perdido para o arrependimento, nem homem que esteja além da possibilidade de arrepender-se. Os rabinos diziam: “Ninguém afirme, ‘Porque pequei, já não tenho remédio’. Confie em Deus e arrependa-se e Deus o receberá.” O exemplo clássico de uma conversão e reforma moral virtualmente impossível é o do Manassés. Adorou aos baais, introduziu deuses estranhos em Jerusalém, e até chegou a sacrificar meninos a Moloque no vale do Hinom. Então foi levado cativo a Assíria e ali, em sua hora mais difícil, experimentou um terrível remorso de consciência. Em tal situação orou a Deus e este escutou sua súplica e o voltou a trazer para Jerusalém. "Então, reconheceu Manassés que o SENHOR era Deus" (2 Crônicas 33:13). Às vezes se necessita o castigo de Deus e sua ameaça para fazer com que o homem volte para seu lar junto ao Pai Eterno, mas ninguém está fora do alcance de Deus para recuperá-lo.

Há uma última crença judia em relação ao arrependimento que deve ter estado presente na mente do João. Pelo menos alguns entre os mestres religiosos do judaísmo ensinavam que se Israel pudesse fazer um ato de arrependimento perfeito, mesmo que fosse apenas durante um só dia, imediatamente ocorreria a vinda do Messias. Somente a dureza dos corações dos homens atrasava o envio do Redentor divino ao mundo.

O arrependimento estava no próprio centro da fé judia daqueles tempos, assim como da fé cristã, pois o arrependimento consiste em apartar-se do pecado e voltar-se para Deus, e para a vida que Deus quer que vivamos.

Mateus 3:13-17 Quando Jesus foi até João para ser batizado, este se surpreendeu e demonstrou não estar disposto a fazê-lo. A convicção do João era que ele necessitava o que Jesus podia dar, e não Jesus o que ele, João, oferecia.

Desde que os homens começaram a refletir sobre a história do evangelho, sempre encontraram difícil a compreensão do batismo de Jesus. No batismo do João havia um chamado ao arrependimento e o oferecimento de um caminho para o perdão dos pecados. Mas, se Jesus é quem nós cremos que é, não precisava arrepender-se, nem necessitava que Deus o perdoasse. O batismo do João era para pecadores conscientes de seus pecados, e portanto não parecia aplicável a Jesus desde nenhum ponto de vista.

Um escritor muito antigo sugeriu que Jesus se batizou somente para agradar a sua mãe e a seus irmãos, e que foi por eles e seus constantes pedidos que se sentiu virtualmente obrigado a ir a João. O Evangelho aos Hebreus, uma narração do tipo dos evangelhos, muito antiga, que não chegou a incluir-se no Novo Testamento, tem uma passagem que diz: “Eis que a mãe de nosso Senhor e seus irmãos lhe disseram: ‘João batiza para o perdão dos pecados, vamos para que nos batize’. Mas Jesus lhes respondeu: ‘Que pecados cometi para ir e ser batizados por que ele? A não ser que estas palavras que estou dizendo sejam um engano fruto de minha ignorância’.”

Pode ver-se que desde o começo muitos pensadores se surpreenderam pelo fato de que Jesus tenha ido para ser batizado mas houve razões, boas e sólidas razões, para que Jesus fosse para ser batizado por João.

(1) Durante trinta anos Jesus tinha estado esperando em Nazaré, cumprindo fielmente com os deveres singelos do lar e da oficina de carpintaria. Durante todo esse tempo sabia que o mundo o estava esperando. Dia a dia crescia sua consciência de estar à espera. O êxito de qualquer empresa está em grande parte determinado pela sabedoria com que se escolha o momento de lançar-se a ela. Jesus deve ter estado esperando a hora de "dar o golpe", o momento justo e apropriado, o som das trombetas que o convocassem à ação. E quando apareceu João soube que tinha chegado o momento.

(2) Por que ocorreu deste modo? Havia uma razão, muito singela e vital. Até esse momento na história nunca judeu algum se submeteu ao batismo. Os judeus conheciam e usavam o batismo, mas somente para os prosélitos que entravam ao judaísmo, vindos de outras religiões. Considerava-se natural que fosse necessário que se batizasse o prosélito, porque sua vida passada tinha estado manchada por uma multidão de pecados e por toda sorte de imundície, mas nenhum judeu tinha pensado jamais que ele, membro do povo eleito, filho de Abraão, que possuía a certeza da salvação, pudesse necessitar o batismo. O batismo era para os pecadores, e nenhum judeu se considerava pecador, afastado de Deus, porque sendo filho do Abraão acreditava que sua santidade estava assegurada. Pela primeira vez em sua história os judeus se deram conta de seu próprio pecado e de sua própria clamorosa necessidade de Deus. Nunca, em toda sua história, tinha havido tão excepcional movimento nacional de penitência e busca de Deus.

Este era precisamente o momento que Jesus tinha estado esperando. Os homens eram conscientes de seus pecados e de sua necessidade de Deus como nunca antes. Esta era sua oportunidade; com o batismo Jesus se identificou com a busca de Deus por parte dos homens. Quando Jesus chegou a ser batizado, estava-se identificando com os homens que tinha vindo salvar, no preciso momento em que estes, com uma nova consciência de pecado, procuravam a Deus.

A voz que Jesus escutou no momento de seu batismo é de suprema importância. "Este é meu filho amado, em quem tenho complacência", disse. Esta oração está composta de duas citações. "Este é meu filho amado" pertence ao Salmo 2:7. Todos os judeus aceitavam este salmo como uma descrição do Messias, o poderoso Rei de Deus que havia de vir. "Em quem tenho complacência" é uma citação de Isaías 42:1, que é uma das descrições do servo sofredor, parte de uma série que culmina em Isaías 53. De maneira que no momento do batismo Jesus é confirmado em duas certezas – a certeza de que verdadeiramente era o escolhido de Deus, e a certeza de que o caminho que tinha pela frente era o caminho da Cruz. Nesse momento soube que tinha sido escolhido para ser Rei, mas também que seu trono teria que ser a Cruz. Soube que estava destinado a ser um conquistador, mas também que sua conquista deveria ter como única arma o poder do amor sofredor. Naquele momento Jesus se viu tanto frente à sua tarefa como ao único meio de que dispunha para cumpri-la.

Passo a passo, Mateus desdobra a história de Jesus. Começou mostrando como Jesus tinha nascido neste mundo. Prosseguiu nos mostrando, pelo menos por implicação, que Jesus devia executar fielmente seus deveres para seu lar antes de começar a cumprir seus deveres para o mundo, que devia demonstrar-se fiel nas responsabilidades menores antes que Deus lhe confiasse a tarefa mais importante.

Continuou demonstrando como, com o surgimento de João Batista, Jesus soube que tinha chegado sua hora e que era tempo de Ele começar sua missão. Mostra a um Jesus que se identifica com a busca de Deus sem precedentes de seu povo. Neste preciso momento nos relata como Jesus toma consciência de que era em realidade o escolhido de Deus, mas que seu caminho para a vitória passava pela cruz. Se alguém tiver uma visão, seu problema imediato é como transformar essa visão em realidade; deve encontrar o modo de converter o sonho em fatos concretos. Este foi precisamente o problema que confrontou a Jesus. Tinha vindo para conduzir os homens de volta a Deus. Como teria que fazê-lo? Que método adotaria? Adotaria o método do poderoso conquistador, ou o do amor paciente, sacrificial? Este foi o problema que se expôs nas tentações. A tarefa lhe fora encomendada. Que método escolheria para realizá-la?

Escrito por William Baclay.