Deus na Experiência

Deus na Experiência

Deus na Experiência

§2.6 Deus na experiência


Os antigos debates filosóficos sobre a existência e a natureza de Deus/deuses foram muito semelhantes aos debates filosóficos desde sempre.98 Mas as convicções hebraicas antigas sempre foram mais profundamente enraizadas na experiência de revelação, isto é, Deus experimentado por meio de convocação e chamado (arquetipicamente de Abraão e Moisés), na inspiração profética, nas imagens emocionantes dos salmistas e na sabedoria dada de cima, sem falar das visões e experiências místicas dos apocalipses. Também Paulo estava familiarizado com esses debates. A reprodução dos seus discursos nos Atos por Lucas (14,15-17 e 17,24-29) é muitas vezes questionada porque eles revelam uma “teologia natural” mais positiva do que implica a acusação de Rm 1,18-32. Mas os argumentos de ordem natural eram tão judaicos quanto gregos” e Rm 1 mostra uma disposição semelhante de usar categorias caracteristicamente estóicas.

Já assinalamos “eterno” e “divindade” em Rm l,20,100e em 1,26 e 28 as idéias de viver “de acordo com a natureza” e de ações que são “convenientes” são caracteristicamente, senão exclusivamente, estóicas.101 Contudo, é verdade que mesmo aqui Paulo parte de uma “cognoscibilidade de Deus”, que primariamente depende de revelação divina: “o que se pode conhecer de Deus é manifesto neles [gênero humano iníquo], pois Deus lho revelou” (1,19).102 O próprio termo “conhecimento” esclarece a questão aqui trata da. Pois enquanto no pensamento grego o termo denota caracteristicamente uma percepção racional, o conceito hebraico também abrangia o conhecimento de relação pessoal. Bultmann propõe a questão nos seus próprios termos: o uso hebraico “é muito mais amplo que o grego, e o elemento de verificação objetiva é menos importante que o de detectar ou sentir ou aprender por experiência”.103 O mesmo se dá com o conhecimento de Deus. Não se trata meramente de reconheci mento teórico de que o teísmo é posição intelectual viável.

Conhecer a Deus é adorá-lo (1,21).104 Como Paulo observou anteriormente: a sabedoria humana é inadequada para alcançar esse conhecimento (ICor 1,21); conhecer a Deus é ser conhecido por ele, uma relação de ida e volta de reconhecimento e obrigação (G1 4,9). Como nas Escrituras (hebraicas),105 o “conhecimento de Deus” inclui experiência das ações de Deus,106 o conhecimento de ida e volta do relacionamento pessoal.107 Neste ponto devemos lembrar quão fundamental foi para a teologia de Paulo a experiência da sua conversão. Pois Paulo a recordava como uma experiência de revelação. O evangelho veio a ele “através de revelação”, quando Deus houve por bem “revelar seu Filho em (ou a) mim” (G11,12.16). “Deus que disse ‘Do meio das trevas brilhe a luz’, foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações para fazer brilhar o conhecimento da glória de Deus” (2Cor 4,6).108

Esse sentido de conhecimento vindo de Deus como revelação pessoal está clara mente presente também em ICor 2,7-13 — a sabedoria oculta de Deus “revelada a nós por meio do Espírito” — em analogia com o autoconhecimento individual e inspiração. E algo dessa natureza sem dúvida também está implícito na dupla referência à revelação divina com que Paulo começa, sem dúvida deliberadamente, a sua exposição teológica em Romanos (Rm 1,17-18). Na correspondência aos coríntios Paulo também lembrou que não desconhecia “visões e revelações do Senhor”, incluindo a experiência mística de uma viagem celeste (2Cor 12,1-7). De fato, é possível que Paulo tenha praticado uma forma de misticismo judaico antes da sua conversão.109 E sua concepção do processo de salvação como tranformação pessoal e corporal110 não é sem relação com idéias presentes em apocalipses e práticas místicas judaicas, cuja motivação principal era o conhecimento de Deus e dos mistérios celestes.111 Ao mesmo tempo também devemos observar que Paulo fez questão de não ter em conta exatamente tais experiências (12,6-10).

Mais típico da experiência que Paulo teve de Deus foi o sentido da graça e da força que transformavam sua vida cotidiana. A graça de Deus a ele (ou dentro dele na estrada de Damasco) não foi em vão, mas estava com ele na eficácia do seu ministério (ICor 15,10). O mesmo sentido da graça de Deus é enfatizado em outras passagens como a força transformadora da sua própria conversão112 e como a força que explicava o seu sucesso missionário.113 Que “graça” e “força” são quase sinônimos no pensamento de Paulo confirma-o uma referência semelhante da sua experiência do poder transformador de Deus, o evangelho como a força de Deus que realiza salvação (Rm 1,16), a força que transcende toda a sua fraqueza demasiado humana,114 e posteriormente em Efésios, “o dom da graça de Deus que me foi concedida pela operação do seu poder” (Ef 3,7).115 Paulo também vivia a sua vida conscientemente “diante de Deus”, “aos olhos de Deus”.116

Pala livremente da confiança em Deus e vinda de Deus (2Cor 3,4-6). Via sua pregação produzir persuasão que só podia atribuir a Deus.117 Experimentava conforto da parte de Deus (2Cor 1,3-7).118 Os três grandes frutos do Espírito, amor, alegria e paz — cuja dimensão emocional não deve ser ignorada — ele os atribuía naturalmente a Deus. “Estamos em paz com Deus” (Rm 5,1). “O amor de Deus foi derramado em nossos corações” (Rm 5,5). “Que o Deus da esperança vos cumule de toda alegria e paz em vossa fé, a fim de que pela ação do Espírito Santo a vossa esperança transborde”, é a oração com que culmina o corpo da sua carta a Roma (Rm 15,3). A graça e a paz de Deus, o Pai, com que saudava todos os seus leitores não eram mera convenção.119 O mesmo sentido de relação vivida com Deus é evidente na oração de Paulo. Não apenas no fato da sua característica ação de graças inicial, que era bastante convencional.120

Mas parcialmente na afirmação regular da sua constância na oração [afirma isso sob juramento em Rm 1,9-10],121 que sugere uma vida vivida em relação de oração com Deus. Em parte também no acréscimo ocasional de “meu” — dando graças a “meu Deus”,122 que indica uma relação compreendida em termos pessoais. E ainda em parte na referência regular das suas cartas a Deus como “nosso Pai”,123 cujo sentido de intimidade pessoal confirma-o a referência à invocação “Abba! Pai!” distintivo dos discípulos cristãos em Rm 8,15 e G1 4,6. Em Rm 8,16 Paulo fala explicitamente de sentido de filiação de Deus como Pai que se apodera dos crentes quando rezam a oração do “Abba”.124 Devemos notar aqui apenas o grau em que Cristo está ligado com o senso de Paulo de conhecimento e relação pessoal com Deus. A revelação transformadora da estrada de Damasco foi do Filho de Deus nele (ou a ele) (G11,16). O conhecimento de Deus veio-lhe “na face de Cristo” (2Cor 4,6). Foi a graça do Senhor (Cristo) que ele experimentou como força na fraqueza (2Cor 12,9). A graça e o amor de Deus chegaram à sua expressão definitiva e culminante em Cristo (Rm 5,8; 15,8.39). A graça e a paz com que saudava seus leitores, atribui-as ao Senhor Jesus Cristo tanto quanto a Deus nosso Pai (Rm 1,7).125 Suas orações eram oferecidas a Deus mediante Cristo (Rm 7,25). Naturalmente, voltaremos a tratar das implicações de tudo isso.126 Por ora basta assinalar a dimensão experiencial da sua fé em Deus.127


Notas
98 Ver especialmente os debates em Cícero, Sobre a natureza dos deuses.
99 Como indica o caráter judaico do discurso de At 17: w. 24-25 - Ex 20,11; SI 145,6; Is 42,5; 57,15-16; Sb 9,1-3.9; w. 26-27 - Gn 1,14; Dt 32,8; SI 74,17; Sb 7,18; w. 27-28 - SI 145,18; Jr 23,23.
100 Ver acima §2.4. mPhysis (“natureza”) não é conceito hebraico, mas primariamente grego e tipicamente estóico: “viver de acordo com a natureza” era o ideal estóico. E “o que convém” é uma frase estóica, um termo técnico em filosofia (ver mais em H. Köster, physis, TDNT 9.263- 66 e H. Schlier, katheko, TDNT 3.438-40).
102 Ver Dupont, Gnosis 20-30.
103 R. Bultmann, ginosko, TDNT 1.697; ver ainda 690-92, 696-98.
104 Ver particularmente Bornkamm, “Revelation” 56; Schlier, Grundzüge 34-40.
105 P. ex., ISm 3,7; SI 9,10; Is 43,10; Mq 6,5. Ver também Dupont, Gnosis 74-81. Ver também n. 87 acima. 106Rm 1,28; Ef 1,17; Cl 1,10; cf. F1 1,9; Cl 3,10; Fm 6.
107 lCor 8,3; 13,12; G1 4,9.
108 Sobre a conversão de Paulo também adiante §7.4 e §14.3.
109 J. Bowker, “ ‘Merkabah’ Visions and the Visions of Paul” JSS 16 (1971) 157-73.
110 Ver adiante §18.2. mVer em especial Segai, Paul cap. 2; C.R.A. Morray-Jones, “Transformational Mysticism in the Apocalyptic-Merkabah Tradition”, 43 (1992) 1-31; J.M. Scott, “The Triumph of God in 2Cor 2.14: Additional Evidence of Merkabah Mysticism in Paul”, NTS 42(1996) 260-81.
112 G1 1 i i > p 9 9 1 w Rm 15,15; ICor 3,10; G1 2,9. U42Cor 4,7; 13,4.
115 Ver também ICor 1,18; 2,5; 2Cor 6,7; 12,9; Cl 1,29. Ver também abaixo §13.2.
116 lTs 1,3; 3,9; 2Cor 2,17; 12,19. Ver também Schlier, Grundzüge 27. Apelar a Deus como testemunha (Rm 1,9; 2Cor 1,23; F11,8; 1 Ts 2,5.10) era comum na literatura grega e judaica (ver meu Romans 28). 117lCor 2,4-5; lTs 1,5.
118 Ver também Rm 15,5; ICor 14,3.31; 2Cor 7,6.13; Cl 2,2; lTs 3,7; 2Ts 2,16; Fm 7.
119 Ver Feine, Theologie 297-98.
120 W.G. Doty, Letters in Primitive Christianity (Philadelphia: Fortress, 1973) 31-33.
121 Rm 1,9-10; ICor 1,4; F11,3-4; Cl 1,3; lTs 1,2-3; 2,13; 2Ts 1,3.11; 2,13; Fm 4; também Ef 1,16. m Rm 1,8; ICor 1,4 v.l; F11,3; Fm 4.
123 A saudação regular nas cartas de Paulo (Rm 1,7; ICor 1,3; 2Cor 1,2; G1 1,3; F1 1,2; Cl 1,2; 2Ts 1,1-2; Fm 3; também Ef 1,2; as pastorais não têm o característico “nosso” — lTm 1,2; 2Tm 1,2; Tt 1,4). De maneira semelhante nas bênçãos (F1 4,20; lTs 3,11.13; 2Ts 2,16; também Ef 6,23). Também na oração (Cl 1,3.12; 3,17; lTs 1,3; 3,9-10; Ef 5,20).
124 Para Paulo a experiência da glossolalia evidentemente incluía um sentido de falar a Deus (ICor 14,2.28).
125 Ver n.
123 Acima.
126 Ver abaixo particularmente §10.5.
127 Ver também especialmente §16.4 adiante