Deus e o Cosmo na Teologia de Paulo

Deus e o Cosmo na Teologia de Paulo

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Deus e o Cosmo na Teologia de Paulo


Pelos primeiros versículos de Romanos é claro que o papel de Deus como criador é outra certeza fundamental da teologia de Paulo: Deus é conhecível pela “criação do mundo” (1,20).49 Este era um aspecto menos controverso do teísmo de Paulo. O conceito de criação e de um criador, ou pelo menos de um arquiteto divino, facilmente podia encontrar seu lugar no âmbito da religião e da filosofia greco romana.50 Assim, Paulo não teve dificuldade em utilizar, neste caso, uma terminologia que provavelmente se poderia considerar estóica, em particular, o contraste do invisível discernido pela mente (1,20). Os termos “eterno” e “divindade” (1,20) já haviam sido tomados do pensamento estóico e introduzidos na tradição sapiencial judaica pela Sabedoria de Salomão e por Fílon.51 E o discurso sobre criação usando as preposições “de”, “por” e “para” (como em Rm 11,36) também era tipicamente estóico.52 Porém, mesmo aqui provavelmente devemos reconhecer distintamente a influência judaica no uso exclusivo da “criar/criação” para o ato e o fato da criação divina, refletindo a mesma exclusividade do uso do hebraico bara’ (criar), em contraste com o uso menos discriminante do pensamento grego.53 

Um contraste mais acentuado pode-se observar entre a visão caracteristicamente grega e a visão caracteristicamente judaica do cosmo. Na primeira tinha grande influência a distinção platônica fundamental entre o mundo visível, acessível aos sentidos, e o mundo das ideias, acessível só através da mente.54 A tendência era pôr esses dois mundos em nítido contraste, sendo o mundo material com toda a sua corruptibilidade considerado muito inferior ao mundo imperecível da mente. Faltava apenas um passo para a realidade física ser desprezada, o que é material ser considerado um peso e algo que puxa para baixo, e a salvação ser entendida como fuga da materialidade.55 Existe algo do mesmo instinto na antítese judaica entre criador e criação, no abandono do antropomorfismo das antigas tradições do Pentateuco e na clássica declaração de Is 32,3: “Os egípcios são humanos e não Deus; seus cavalos são carne e não espírito”.56 E Paulo não deixou de ser influenciado por essa antítese — um ponto sobre o qual teremos de voltar em §3. 

Entretanto, o que é significativo nesse ponto é a concepção essencialmente judaica de Paulo de um cosmo que foi criado bom (Gn 1,26-31). O gênero humano ainda é a imagem de Deus (ICor 11,7). “A terra é (ainda) do Senhor, e tudo o que ela contém” (ICor 10,26, citando SI 24,1). “Nada é profano/impuro em si” (Rm 14,14). Ainda mais explícito é lTm: “Tudo o que Deus criou é bom” (lTm 4,4). Assim o reino criado ainda fala de Deus (Rm 1,19-20),57 e, apesar da sua presente sujeição à futilidade, participará da redenção final (Rm 8,19-23). Portanto, não surpreende que o ato de Deus de res suscitar dos mortos, o clímax da sua salvação, seja parte integrante do seu ato de criar: “aquele que faz viver os mortos”58 é o que chama à existência as coisas que não existem” (Rm 4,17).59 Posteriormente o pensamento paulino desenvolve-se em termos de in tegração ainda mais clara entre criação e salvação (Cl 1,15-20; v. 20: “todas as coisas” reconciliadas com Deus),60 e de uma renovação de acordo com a imagem do criador (3,10; de maneira semelhante Ef 4,24). 

Também caracteristicamente judaica é a concepção que Paulo tem da ordenação divina do cosmo e da sociedade humana (Rm 13,1- 5).61 Como já foi indicado, a vontade de Deus era fator determinante na vida e nos planos do próprio Paulo (Rm 1,10; 15,32).62 Como “judeu” devoto, era da maior importância para Paulo “discernir a von tade de Deus” (Rm 2,18; 12,2). A piedosa qualificação “Deus querendo” era, com certeza, de uso muito comum.63 Mas enquanto a tradição grega admitia o arbitrário e o inexplicável com sua ideia de destino, Paulo, com o pensamento judaico geral, resolvia o problema da teodicéia atribuindo tudo ao “desígnio” (Rm 8,28-30; 9, ll)64 e à ‘Vontade” divina (9,19). E não recuava diante da dureza do corolário: o oleiro divino tem o “direito” de “fazer da mesma massa de argila um utensílio para uso nobre e outro para uso vil” (9,19-22).65 Sua solução final para esse embaraçoso enigma da história e da experiência era a convicção apocalíptica de que o desígnio de Deus era “mistério” oculto desde séculos e revelado somente a uns poucos privilegiados (Rm 11,25).66 Neste mistério está contido um chamado original que é “irrevogável” (11,29) e um desígnio final de misericórdia (11,30-32). 

Ligada a isso, havia uma visão diferente do tempo. Os gregos mais caracteristicamente concebiam o tempo como cíclico,67 a relação do mundo material com o mundo da mente como mais fixo.68 Os judeus, ao contrário, viam o tempo mais naturalmente como a progressão de eras, e esperavam pela era vindoura para libertá-los dos males do presente. Paulo compartilhava esta última visão. Concebia naturalmente “este século” como algo inferior: “não vos conformeis com este século” (Rm 12,2); “a sabedoria deste século” é loucura em comparação com a sabedoria de Deus (ICor 2,6); o presente século é mau (G11,4).69 Implícita encontra-se a ideia de tempo vindouro, como também indicam os seus “benditos”: Deus bendito “pelo século” ou “pelos séculos” ou ainda “pelos séculos dos séculos”,70 refletindo a oração do salmista.71 Assim também o processo de salvação está em conformidade com o cronograma de Deus. Cristo veio na “plenitude do tempo” (G14,4). “O tempo se fez curto” (ICor 7,29). “O(s) fim (fins) dos séculos” veio para ele e para os seus leitores (ICor 10, ll).72 Então, inevitavelmente, o clímax de todas as coisas será “Deus, tudo em todos” (ICor 15,28). 

Estreitamente ligada a isso está a ideia de julgamento final do cosmo, presumivelmente para encerrar o “presente século mau”, e de um Deus como juiz final. A ideia era conhecida no pensamento grego, mas particularmente proeminente na tradição judaica.73 Para Paulo era simplesmente axiomática, como atestam amplamente os primeiros capítulos de Romanos: “sabemos que o julgamento de Deus se exerce segundo a verdade” (2,2-3); haverá um dia de ira, quando Deus julgar as ações ocultas do gênero humano (2,5-8.16); o julga mento será segundo a Lei (2,12-15); todo o mundo está sujeito ao julgamento do Deus (3,19). De importância não menor para Paulo são neste ponto dois axiomas fundamentais do conceito judaico de justiça divina: que “Deus retribuirá a cada um segundo as suas obras” (2,6)74 e que o julgamento de Deus será imparcial (2,11).75 O julga mento de Deus deve ser justo, “pois de outra maneira como Deus julgará o mundo?” (3,5-6).76 

Com isso também está correlacionada a primeira grande ideia que Paulo expõe em Romanos: que a ira de Deus já é revelada do céu (1,18). Igualmente este conceito era conhecido no mundo antigo; a indignação divina como resposta do céu à impiedade humana ou como forma de explicar catástofres públicas ou tragédias inesperadas.77 Mas para Paulo, como para os seus antepassados judeus,78 “a ira de Deus” aqui dificilmente é diferente da ira do juízo final, justo e ver dadeiro.79 E pela acusação que explica 1,18, é claro que para Paulo “a ira de Deus” denota a inevitável, divinamente ordenada, constituição moral da sociedade humana80 “a reação de Deus ao mal e ao pecado”.81 A justiça de Deus como criador, as obrigações que lhe são próprias como criador, determinaram que as ações humanas têm consequências morais.82 Assim, a consequência da recusa da dependência da criatura do seu criador foi futilidade do pensamento e obscurecimento da experiência (1,21). A concentração da reverência na criatura e não no criador resultou em idolatria, depravação da sexualidade e a sordidez diária da sociedade desordenada (1,22-31). A ira de Deus, assim podemos dizer, é a entrega da sua criação humana a si mesma. Daqui o julgamento três vezes repetido, “por isso Deus os entregou” — “segundo o desejo dos seus corações” (1,24), “a paixões aviltantes” (1,26), “à sua mente incapaz de julgar” (1,28).83 Evidentemente para Paulo esta é a mesma ira que se manifestará no dia do juízo: conhecemos o caráter do juízo final de Deus pela constituição moral do mundo que ele criou. Portanto, também aqui, ainda que o pensamento grego e judaico coincidissem consideravelmente nas suas concepções das relações de Deus com o mundo, o teísmo de Paulo é tipicamente judaico. E não como uma teoria abstrata concernente a Deus, mas como maneira prática de entender e determinar a responsabilidade humana para com a criação, para com os outros e para consigo mesmo.




Notas
44 Ver adiante §24.7.
45 Rm 16,20; ICor 5,5; 7,5; 2Cor 2,11; 11,14; 12,7; ITis 2,18; 2Ts 2,9; também lTm 1,20; 5,15. Notar também “o deus deste mundo” (2Cor 4,4), “Beliar” (2Cor 6,15), “o maligno” (2Ts 3,3; Ef 6,16), “o príncipe do poder do ar” (Ef 2,2), e “o diabo” (Ef 4,27; 6,11; lTm 3,6-7; 2Tm 2,26).
46 Jó 1-2; Zc 3,1-2; lCr 21,1 como interpretação de 2Sm 24,1.
47 Wink, Unmasking (§5 n. 1), “Satanás é o meio da sua libertação” (16).
48 Ver adiante §5.
49 Ver também Rm 8,19-22.39; ICor 11,9; Cl 1,15-16.23; 3,10; Ef 3,9; e o conceito com parável de “nova criação” (2Cor 5,17; G1 6,15).
50 O Timeu de Platão era texto fundamental do pensamento intelectual grego. Ver também Kleinknecht, TDNT 3.73-74 e H. Sasse, Kosmos TDNT 3.874-80. A representação da criação por Fílon em De Opificio mundi foi fortemente influenciada pelo pensamento platônico médio. Ver também J. Dillon, The Middle Platonists (Londres: Duckworth/Ithaca: Cornell University, 1977) 155-78.
51 Aidios — cf. Sb 2,23 e 7,26; theiotes — na LXX só em Sb 18,19. Ver ainda Lietzmann, Rómer 31-32; W. Michaelis, aoratos, TDNT 5.368-69.
62P. ex., Pseudo-Aristóteles, De mundo 6, Fílon, Cher. 125-26; Sêneca, Epist. 65,8.
53 Ver meu Romans 57-58.
54 A influência é particularmente clara no Opif. de Fílon 16-44.
55 Classicamente no refrão soma sema, “o corpo é o túmulo (da alma)”, e a muito citada frase de Empédocles sobre “a veste estranha da carne” (allognos chiton sarkos) citada por E. Schweizer, TDNT 7.1026 e 1027 respectivamente.
56 Sb 9,15 (“um corpo corruptível pesa sobre a alma, esta tenda de argila oprime a mente pensativa”) ilustra bem até que ponto a visão grega penetrara no judaísmo helenístico.
57 Refletindo Sb 13,1, mas também uma percepção comum no pensamento estóico; ver, p. ex., Pseudo-Aristóteles, De mundo 6 e Fílon Spec. Leg. 1,35; e ainda Bornkamm, “Revelation” 50-53.
58 A linguagem reflete a segunda das Dezoito bênçãos: “vós vivificais os mortos”. Em Paulo note-se o seu uso repetido em ICor 15,22.36.45.
59 Os dois elementos da última frase são caracteristicamente judaicos: criação como um “chamado” eficaz (Is 41,4; 48,13; Sb 11,25; 2 Baruc 21,4); crença de que Deus criou ex nihilo (2Mc 7,28; Fílon regularmente, p. ex., Opif. 81 e Leg. ALI. 3,10; José e Aseneth 12,2; 2 Baruc 21,4; 48,8; 2 Enoc 24,2). Aqui Paulo efetivamente reflete Fílon: “ele chamou as coisas que não têm existência para serem” (Spec. Leg. 4.187). E o pensamento das duas Irases reflete José e Aseneth 8.9.
60 Cf. Is 11,6-9; 65,17.25; Jub. 1.29; 23,26-29; 1Enoc 91,16-17; Fílon, Spec. Leg. 2.192. Ver ainda L. Hartman, “Universal Reconciliation” (Col. 1.20)”, SNTU10 (1985) 109-21.
61 Ver abaixo §24,2.
62 Ver também 2Cor 8,5; G11,4; Cl 4,12; lTs 4,3; 5,18; também Ef 1,5.9.11; 5,17; 6,6.
63 Ver Deissmann, Bible Studies 252; BAGD, thelo 2.
64 Notar a freqüência de palavras com o prefixo pro (“antes”) atribuídas a Deus nesta seção: Rm 8,28-29; 9,11.23; 11,2; também ICor 2,7; G1 3,8; Ef 1,5.11; 2,10; 3,11.
65 A imagem era popular na tradição judaica (ver particularmente Is 29,16; 45,9; Jr 18,1-6; Eclo 33,13); Paulo sem dúvida tinha em mente Sb 15,7; ver também meu Romans 557.
66 Ver também meu Romans 678.
67 Refiro-me particularmente à concepção dos estóicos de uma eterna recorrência (ver Long/Sedley 1.308-13), mas também ao ciclo das estações mitificadas nos cultos dos mistérios.
68 Particularmente nas várias formas do platonismo.
69 Ver também Rm 8,18; ICor 1,20; 2,8; 3,18-19; 2Cor 4,4; Ef 2,2; 5,16.,0Rm 1,25; 9,5; 11,36 (16,27); 2Cor 9,9; 11,31; G1 1,5; F1 4,20; também lTm 1,17 e 2Tm 4,18. O contraste entre uma era presente dominada pelo mal e uma era vindoura é explicitamente destacado só nos apocalipses judaicos tardios 4 Esdras e 2 Baruc, mas é desenvolvimento natural de passagens seminais tais como as visões em Daniel 2 e 7; estava implícito no discurso sobre o “tempo de iniquidade” de Qumrã (CD 6.10,14; 12.23; 15.7; 1 Qp Hab 5.7), e provavelmente já fazia parte da tradição de Jesus (Mt 12,32; Mc 10,30; Lc 20,34-35).
71 Salmos 41,13; 72,19; 88,52; 106,48.
72 Cf. particularmente 1 QpHab 7; 4 Esdras 6.7; 11.44. Mas o plural “fins” em ICor 10,11 causa algum embaraço. ,3Ver documentação no meu Romans 80,84.
74 S1 62,12 e Pr 24,12; mas também Jó 34,11; Jr 17,10; Os 12,2; Eclo 16,12-14; 1 Enoc 100.7; outras passagens de Paulo 2Cor 5,10; Cl 3,25; também 2Tm 4,14.
75 Dt 10,17; 2Cr 19,7; Eclo 35,12-13; Jub. 5.16; 21.4; 30.16; 33.18. Salmos de Salomão 2,18; outras passagens de Paulo Cl 3,25 e Ef 6,9. Ver ainda particularmente J. Bassler, Divine Impartiality: Paul and a Theological Axiom (SBLDS 59; Chico: Scholars, 1982).
76 Outras passagens de Paulo: um “dia” de julgamento (ICor 1,8; 5,5; F1 1,6.10; 2,16; lTs 5,2.4); um dia de “ira” (Rm 5,9; 9,22; 11b 1,10; 5,9).
77 H. Kleinknecht, et al., orge, TDNT 5.383-409.
78 Ver, p. ex., J. Fichtner, orge, TDNT 5.401.
79 É o mesmo termo que é repetido ao longo dos capítulos iniciais de Romanos: 1,18; 2,5.8; 3,5; 4,15; 5,9.
80 Cf. Dodd, Romans 20,24; G.H.C. Macgregor, “The concept of the Wrath of God in the New Testament”, NTS 7 (1960-61) 101-9 (aqui 105); A.T. Hanson, The Wrath of the Lamb (Londres: SPCK, 1957) 85, 110; Whiteley, Theology 61-72; Ridderbos, Paul 108-10. Mas o pensamento não deve ser reduzido a uma visão deísta: Deus é ativo sustentando essa estrutura moral da sua criação. Ver abaixo §18.6.
81 Fitzmyer, Paul 42.
82 Notar o paralelo deliberado entre a revelação da justiça de Deus (1,17) e a revelação da sua ira (1,18). Sobre o significado da “justiça de Deus”, ver abaixo §14,2.
83 Este entendimento da ira de Deus como consequência e resultado da desobediência ajuda a explicar a difícil passagem de lTs 2,16. Feine, Theologie 307-8, compara SI 79,5; 103,9 e Is 57,16 e observa que Rm 9,22 é qualificado por 11,32. Ver também Cl 3,6 e meu Colossians 216-17.