Há Outros Deuses?

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Há Outros Deuses?

Todavia esse quadro muito claro de nítida antítese entre o monoteísmo judaico de Paulo e o politeísmo e a idolatria dos gentios pode ser claro demais. As apreensões vêm de três frentes: do reconhecimento de uma forma de monoteísmo na religião greco-romana; do questionamento do caráter estrito do monoteísmo judaico, e de algumas declarações do próprio Paulo a respeito do assunto.

a) A unicidade de Deus como característica não deve ser exagerada. A maioria das religiões e dos cultos religiosos antigos da época em questão via um deus supremo no topo da hierarquia divina,21 e as pessoas de mente mais filosófica facilmente poderiam conceber Deus como único, sendo “todos os deuses simplesmente a sua vontade em operação nas várias esferas de ação”.22 Todavia, dificilmente era a mesma coisa que o monoteísmo radical dos judeus. Pois era típico da tolerância liberal do período helenístico precisamente essa facilidade de reconhecer a divindade em muitas manifestações.23 A piedade, entendida como honrar a divindade de acordo com o costume avito local, exigia respeito genuíno dos outros deuses e seus cultos. Por outro lado, foi a intolerância do judaísmo ao recusar-se a reconhecer esses outros deuses como manifestações de Javé (ou Javé como a manifestação de Zeus)24 que provocou a acusação de ateísmo contra os judeus: a recusa de reconhecer a realidade de outros deuses (Josefo, Ap. 2.148).25 A filosofia grega sabia igualmente ser crítica da idolatria, como se apressou Celso a lembrar aos cristãos do século II (Contra Celsum, 1.5, citando Heráclito). Que os deuses eram incorpóreos, não tinham sentimentos humanos e não necessitavam de sacrifícios era lugar comum filosófico.26 A crítica cristã posterior do antropomorfismo deve tanto à crítica grega dos deuses tradicionais quanto à polêmica judaica contra a idolatria.27 Todavia, apesar da refinada concentração da discussão filosófica sobre os deuses, não estava em disputa a importância que tinha para a cidade e o estado a promoção dos cultos. A glória evanescente da tradição intelectual ateniense estava confortavelmente sentada numa cidade “cheia de ídolos” (At 17,16). Por outro lado, a recusa judaica de imaginar a forma de Deus (e fazer imagens dele) e sua antipatia pelo culto caracterizado pela devoção a imagens produzidas pela arte humana era algo desconcertante para a maioria dos gregos e dos romanos. O poeta romano Juvenal, escrevendo no início do século II provavelmente foi típico ao satirizar o caráter nebuloso dos seus compatriotas judaizantes, “que não adoram nada a não ser as nuvens e o número do céu” (Sátiras 14,97). Portanto foi a exclusividade do monoteísmo de Israel que o distinguiu no mundo antigo, e a intolerância do seu ataque à idolatria. Não há razão para duvidar que Paulo compartilhava a intolerância de toda essa depravação da imagem de Deus: “jactando-se de possuir a sabedoria, tornaram-se tolos e trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens do homem corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis” (Rm 1,22-23). 

b) Alguns vêem outra qualificação do monote próprio lado judaico, especificamente na explosão de figuras inter mediárias que parecem ter sido interpostas entre Deus e o cosmo no período do Segundo Templo28 e nos indícios de sincretismo judaico que foram detectados no judaísmo da diáspora.29 Mas, ainda que pareça ter havido uma rápida expansão da população angélica nos duzentos anos antes de Paulo, isso não constitui uma ameaça real ao monoteísmo judaico.30 Foi, na verdade, uma maneira de os apologistas judeus conceitualizarem os deuses das outras nações — considerá- los como parte do cortejo celeste de Javé31 ou como anjos nomeados por Javé para governar essas nações.32 Ao mesmo tempo há uma repetida advertência nos escritos da época de que os anjos não devem ser considerados deuses nem adorados.33 Assim também, no judaísmo, a figura da Sabedoria divina34 não é um ser divino independente de Deus por mais expressivamente que a imaginação poética a tenha usado. Ela é na verdade outra maneira vívida de falar da imanência de Deus, sem prejudicar a sua transcendência. Por exemplo, em Sb l0ss a Sabedoria é apresentada como a proteção de Deus aos patriarcas e a Israel.35 Menos expressivas, mas exercendo a mesma função que a Sabedoria são circunlocuções semelhantes, como o espírito de Deus e a glória de Deus.36 Quanto à tradição de um judaísmo sincretístico na diáspora, descontados os casos extremos, como o de Elimas em Chipre, o “falso profeta e mago” (At 13,6-8), e os sete filhos de Sceva, “um sumo sacerdote judeu” (At 19,14), os indícios são muito fracos e na melhor das hipóteses ambíguos. Especificamente, apesar da prolongada especulação sobre um culto judaico sincretista de anjos na Ásia Menor, provavelmente os dados se explicam melhor em termos de empréstimo pagão de conceitos judaicos entendidos só pela metade.37 Tal tese certamente se coaduna melhor com a coerente evidência de comunidades judaicas desejosas de manter sua identidade étnica e seus costumes avoengos. Assim, o testemunho mais sensato é o de Josefo, que afirma sem qualificação que “reconhecer Deus como único é comum a todos os hebreus” (Ant. 5.112). E Tácito, o mais rude entre os críticos romanos dos judeus, escrevendo no começo do século II, também não tem dúvida e observa com relutante respeito: Os judeus concebem a divindade como um só deus, e só na mente; consideram ímpios os que de materiais perecíveis fazem representações de deuses à imagem do homem; esse ser supremo e eterno é para eles incapaz de representação e sem fim. Por isso não erguem estátuas em suas cidades, menos ainda em seus templos; essa adulação não é feita aos seus reis, nem essa honra dada aos Césares (Hist. 5.5.4). Evidentemente também Paulo não tinha dúvida sobre o mono teísmo judaico na sua constante afirmação do Shemá. A questão sobre como ele via o enquadramento de Jesus, agora exaltado como Senhor, nesse monoteísmo e, particularmente, como fez uso da figura da Sabedoria divina ao falar de Jesus como Senhor, são problemas aos quais deveremos voltar depois.38 De momento só temos de falar de Paulo como herdeiro de uma fé judaica em Deus como único, firmemente afirmada e claramente percebida. 

c) No contexto dessas discussões as crenças mais abertas a respeito de Deus são fascinantes e às vezes embaraçosas. Assim, da sua profissão de Deus como único em ICor 8 passa a este comentário ambivalente: “Se bem que existam os que são chamados deuses, quer no céu, quer na terra, e há de fato muitos deuses e muitos senhores, para nós contudo existe um só Deus, o Pai” (ICor 8,5-6). A linguagem de Paulo não deixa claro se pretende referir a qualificação (“chamados deuses”) à oração seguinte ou deseja afirmar a existência de outros deuses como tais. Anteriormente foi mais direto: “todo o que se chama Deus” (2Ts 2,4); os deuses adorados pelos gentios eram “seres que por natureza não são deuses” (G14,8).39 Por isso a sua ambiguidade em ICor 8 pode ser deliberada, seja porque ele mesmo estava incerto sobre quanto devia conceder, seja porque escrevia a partir da sensibilidade pastoral, ad hominem, para dar o maior peso possível aos temores dos “fracos” de Corinto.40 Paulo dificilmente poderia deixar de estar consciente dos numerosos deuses adorados nas cidades que visitava. Todavia, parece que a sua in tenção foi a de maximizar a força da profissão do Deus uno, que com partilhava com os coríntios, afirmando-a corajosamente em face das outras crenças mais comuns. O que importa o que os outros crêem? Isso não toca a verdade, que nos foi dada segundo a qual “Deus é único”! Igualmente ambivalente é a idéia, em estágios posteriores da mesma discussão, de que os ídolos são habitados por demônios (ICor 10,20-21). Novamente, devemos perguntar: Paulo apenas refletia os temores dos membros fracos da igreja de Corinto,41 nomeando realidades das quais ele mesmo não tinha certeza? Ou o seu uso do termo “demônio” foi simplesmente o resultado do seu eco deliberado de Dt 32,17, juntamente com o outro eco de Dt 32,21 em ICor 10,22, concluindo que o ídolo “não é deus” (Dt 32,21). Em conexão com isso, convém lembrar que os “demônios” nunca mais são mencionados nas cartas incontestadas de Paulo42 e em parte alguma Paulo fala de exorcismo.43 Assim, evidentemente, ele podia deixar ambíguo o status de outros deuses-demônios, pois o que lhe interessava eram acima de tudo duas coisas: 1) A única realidade suprema é Deus; conseqüente mente qualquer coisa que a prejudique, ainda que seja um vazio “nada” (ídolo), ainda assim prejudica a suprema realidade de Deus. 2) ídolos-demônios têm uma realidade existencial muito real — quer sejam apenas projeções humanas de outros deuses (§2.2 acima), quer sejam objetivamente demônios reais — e essa realidade existencial pode ser tão perniciosa e escravizante que não se lhe deve dar lugar.44 “O Satanás” aparece mais freqüentemente.45 Mas o uso regular do artigo definido reflete a continuação da influência do conceito original de uma força hostil a Deus, mas que este permite agir para servir a sua vontade.46 Daqui a inferência de ICor 5,5 — um membro da comunidade entregue a Satanás para a salvação do seu espírito (de maneira semelhante lTm 1,20);47 e de 2Cor 12,7 — “um mensageiro de Satanás” que dá a Paulo a ocasião de aprender uma das suas valiosas lições (12,9-10). Em Romanos a única referência é a confiante esperança de que o “Deus da paz não tardará a esmagar Satanás debaixo de vossos pés” (Rm 16,20). Antes na mesma carta Paulo menciona outros poderes celestes hostis só para afirmar a sua impotência diante de Deus em Cristo (Rm 8,38-39). Aqui há questões às quais teremos de voltar quando tratarmos da concepção do mal em Paulo.48 De momento basta observar que qualquer que seja a realidade que essas forças tinham para Paulo, elas evidentemente não comprometiam o seu monoteísmo. A confiança de Paulo em Deus como único permaneceu inabalável.


Notas
21 MacMullen, Paganism observa que em inscrições da Ásia Menor Zeus é invocado duas e meia vezes mais que qualquer outro.
22 MacMullen, Paganism 87; ver também, p. ex., H. Chadwick, Origen: Contra Celsum (Cambridge, Cambridge University, 1953) XVI-XX.
23 Por exemplo, encontramos regularmente Zeus junto com títulos que eram vistos como variações locais: Zeus Sarapis, Zeus Dionysus, Zeus Ammon, Zeus Baal e até Zeus Ahuramazda, e a forma tripla Zeus Helio Sarapis (LSJ, Zeus II; H. Kleinknecht, theos, TDNT 3.76; MacMullen, Paganism 83-84,90).
24 Agostinho lembra que Varão (século II a.C.) “pensava que o Deus dos judeus era o mesmo que Júpiter” (GLAJJ 1.209-10).
25 Esta foi a raiz do preconceito popular contra os cristãos como ateus, já em Martírio de Policarpo 3.2; 9.2. 
26 MacMullen, Paganism 76.
27 Grant, Gods 76-77. Ver também os extratos em Long/Sedley, §23.
28 Bousset/Gressmann, 319; Hengel, Judaism 1.115. Muito extremado é M. Barker, The Great Angel: A Study of Israel Vs Second God (Londres: SPCK, 1992). “Particularmente com referência à “falsa doutrina” em Colossas ver, p. ex., meu (Colossians 27-28; também GLAJJ 1.359; C.E. Amold, The Colossian Syncretism: The Interface between Christianity and Folk Beliefat Colossae (WUNT 2.77; Tübingen, Mohr, 1985). Comparar Hengel e Schwemer, Paul between Damascus and Antioch 76-80.
30 Wicks, Doctrine of God, 122-28; “em cada século a doutrina clara da maioria dos autores, qualquer seja sua angelologia, é a de um Deus que está em contato sem interme diários com a sua criação” (124). Ver ainda Hurtado, One God (§10 n.l) 17-39.
31 P. ex.: Ex 15,11; Salmos 29,1; 82,1; 89,6-7; 95,3; 103,21; 148,2. Ver ainda Caird, Principalities (§5, n. 1) 1-4,11-12; Wink, Unmasking (§5, n. 1) 109-11.
32 Dt 32,8-9; Dn 10,13.20-21; Eclo 17,17; Jub 15,31; 1Enoc 89,59-60; 92,22-25; Targum Pseudo-Jônatas sobre Gn 11,7-8. A idéia passou à era cristã; assim, p. ex., o imperador Juliano no seu discurso contra os “galileus”: “sobre cada nação há um deus nacional, com um anjo atuando como seu agente...” (MacMullen, Paganism 82); outros exemplos em Wink, Unmasking (§5, n. 1) 92.
33 Apoc. Sof. 6,15; Apoc. Abr. 17,2; Fílon, Fuga 212; Son. 1,238. Ver ainda L.T. Stuckenbruck, Angel Veneration and Christology: A Study in Early Judaism and in the Christology of the Apocalypse of John (WUNT 2.70; Tübingen: Mohr, 1995).
34 Pr 8,22-31; Eclo 24,1-22; Br 3,9-37; Sb 6,12-11,1; lEnoc 42; Fílon em diversas passagens (ver minha Christology 169,171,173-74).
35 Dunn, Christology 168-76, 215-30. Ver mais adiante §11.1.
36 Ver também Kleinknecht, TDNT 3.98-99; Casey, Jewish Prophet (§10 n. 1); Hurtado, One God (§10 n. 1) cap. 2.
37 Ver particularmente A.R.R. Shepherd, “Pagan Cults ofAngels in Roman Asia Minor”, Talanta 12-13 (1980-81) 77-101 (aqui 94-99); P. Trebilco, Jewish Communities in Asia Minor (SNTSMS 69; Cambridge: Cambridge University, 1991) 137; S. Mitchell, Anatolia: Land, Men and Gods inAsia Minor, 2 vols. (Oxford: Clarendon, 1993) 2.46. Arnold, (acima n. 29) ignora os aspectos judaicos tradicionais na carta que indica quão dominante era a ameaça judaica para as igrejas domésticas cristãs de Colossas; ver ainda meu “The Colossian Philosophy: AConfident Jewish Aplogia”, Bib 76 (1995) 153-81.
38 Ve abaixo especialmente §10.5.
39 Uma afirmação caracteristicamente judaica (2Cr 13,9; Is 37,19; Jr 2,11; 5,7; 16,20; Sb 12,27; Ep. Jr 23.29.51-52.64-65.69.72.
40 Ver, p. ex., a discussão em Conzelmann 1 Corinthians 143, e Fee 1 Corinthians 372-73. Paulo “não está interessado na existência ontológica de outros deuses, mas no fato existencial de que o que quer que seja adorado é de fato, para aquela pessoa, um deus” (Wink, Unmasking [§5 n. 1] 113; também 125).
41 Em SI 96,5 a LXX (95,5) traduz o hebraico ’elihim (“ídolos”) por daimonia (“demô­nios”). Cf. Filon: “É costume de Moisés dar o nome de anjos aos que outros filósofos chamam demônios (ou espíritos), almas, isto é, que voam e pairam no ar... Assim, se entenderes que almas e demônios e anjos são apenas nomes diferentes para o mesmo objetivo, lançarás fora de ti este opressivo peso, o medo de demônios ou superstição” (Gigant. 6.16). Sobre demônios na religião popular da época ver MacMullen, Paganism 79-80; e ainda em §5.1.
42 Mas notar lTm 4,1. Todavia cf. At 16,18; 19,13.
44 Ver adiante §24.7.
45 Rm 16,20; ICor 5,5; 7,5; 2Cor 2,11; 11,14; 12,7; ITis 2,18; 2Ts 2,9; também lTm 1,20; 5,15. Notar também “o deus deste mundo” (2Cor 4,4), “Beliar” (2Cor 6,15), “o maligno” (2Ts 3,3; Ef 6,16), “o príncipe do poder do ar” (Ef 2,2), e “o diabo” (Ef 4,27; 6,11; lTm 3,6-7; 2Tm 2,26).
46 Jó 1-2; Zc 3,1-2; lCr 21,1 como interpretação de 2Sm 24,1.
47 Wink, Unmasking (§5 n. 1), “Satanás é o meio da sua libertação” (16).
48 Ver adiante §5.
49 Ver também Rm 8,19-22.39; ICor 11,9; Cl 1,15-16.23; 3,10; Ef 3,9; e o conceito com parável de “nova criação” (2Cor 5,17; G1 6,15).
50 O Timeu de Platão era texto fundamental do pensamento intelectual grego. Ver também Kleinknecht, TDNT 3.73-74 e H. Sasse, Kosmos TDNT 3.874-80.