Rudolf Bultmann (Teólogo)

Rudolf Bultmann (Teólogo)
BULTMANN, RUDOLF (1884-1976). Erudito e influente teólogo do NT, especialmente por meio de sua obra sobre uma interpretação existencialista da fé cristã. Após estudar em Tübingen, Berlim e Marburgo, Bultmann ensinou em Breslau e, de 1921 a 1951, foi professor de NT em Marburgo. Seu pensamento está exposto em sua obra Theology of the New Testament [Teologia do Novo Testamento], assim como em uma variedade de estudos do NT e de questões teológicas em suas várias coleções de ensaios e em seu amplo comentário do evangelho de João.

Bultmann concebeu suas pro- posições básicas sobre uma interpretação existencialista no início de seu desenvolvimento teológico, em- bora a terminologia de “querigma” e “mito” não tenha emergido senão no final da década de 1930. Para Bultmann, a interpretação do NT implica “demitização”, i.e., uma in- terpretação adequada da linguagem mitológica na qual é expressa seu querigma ou mensagem a respeito da existência humana. “Mito” é um termo flexível no uso de Bultmann, mas muito comumente denota uma linguagem de “objetificação”. Tal linguagem projeta a realidade “lá fora”, falando desta como um obje- to essencialmente não relacionado com o autoentendimento e a exis- tência humana. “Demitizar” os escritos bíblicos não significa eliminar sua mitologia, embora retenham material não mitológico: Bultmann criticou tal seletividade nas tenta- tivas de alguns teólogos liberais do século XIX em querer desemaranhar os ensinos morais de Jesus de sua escatologia, por exemplo. Trata-se, mais propriamente, de um processo de interpretar a mitologia de modo consistente, em termos do entendi- mento da existência humana que ela enuncia. Assim, por exemplo, demitizar as narrativas da criação não é repudiá-las como inverossímeis, mas, sim, interpretá-las como expressões objetificadas do entendimento que o homem tem de si mesmo como casual.

Até certo ponto, demitizar é um exercício apologético*, procurando distinguir a fé cristã de uma cosmovisão sobrenatural obsoleta, na qual a fé encontra expressão e que não está mais disponível para nós. Mas mais determinantes no pensamento de Bultmann do que tais considerações são os fatores filosóficos e teológicos. Ele absorveu muito da obra de Martin Heidegger (1899-1976) (ver Existêncialismo), seu colega de Marburgo, cujo livro Being and Time [O ser e o tempo] (1927) é um dos textos fundamentais do existencialismo alemão. A análise que Heidegger faz da existência humana nesse livro o influenciou, principalmente, quanto à questão do homem como sujeito da história* e cuja identidade não é a expressão de uma natureza dada antecipada- mente, mas, sim, criada em atos históricos de decisão e escolha. Esse sentido do homem mais como “história” do que como “na- tureza”, que emerge no tratamento que Bultmann dá à antropologia* teológica em sua obra Theology of the New Testament, [Teologia do Novo Testamento], estaria em ligação estreita com a posterior influência da filosofia neokantiana de Marburgo de Hermann Cohen (1842-1918) e Paul Natorp (1854- 1924), com seu dualismo radical de “fato” e “valor”.

Essas influências filosóficas são, no entanto, absorvidas no que é essencialmente um projeto teológico. Por trás da demitização, acha-se uma tradição do luteranis- mo do século XIX, de acordo com a qual o conhecimento dos fatos objetivos constitui a “obra” huma- na, isto é, a tentativa de garantir o “eu” contra o encontro com Deus, mediante uma descrição codifica- da do ser e dos atos divinos. Na verdade, a demitização é, para Bultmann, o equivalente episte- mológico* da justificação* pela fé: tanto as obras meritórias quanto o conhecimento objetificado de Deus são tentativas de garantir o eu con- tra Deus. Nesse ponto, Bultmann tem muito que ver com o teólogo luterano da virada do século Wi- lhelm Herrmann*, que colocou ênfase na fé como um encontro com Deus no presente, mais do que um mero assentimento a rea- lidades objetivas doutrinariamente descritas. Sob essa perspectiva, deve-se acrescentar que a atração primeira de Bultmann pela teologia dialética* dos iniciantes Barth* e Friedrich Gogarten (1887-1967) é prontamente compreensível, na medida em que ele, tal como Barth em The Epistle to the Romans [A epístola aos Romanos[ (1919), rejei- ta qualquer base para a segurança humana contra a interrupção da parte de Deus.

Essa abordagem da demitização ou “desobjetificação” ajuda a contribuir para o ceticismo radical de Bultmann quanto à historicidade dos registros do NT. Juntamente com outros primeiros críticos da forma (ver Crítica Bíblica*), como Martin Dibelius (1883-1947), Bultmann deduz, em The History o the Synoptic Tradition [História da tradição sinóptica] (1921), que os evangelhos não contêm quase nada de informação histórica autêntica a respeito de Jesus, mas, sim, material moldado e geralmente criado pelas comunidades cristãs primitivas. A teologia de Bultmann pode se permitir tal ceticismo, no entanto, exatamente porque os fatos históricos objetivos simplesmente constituem “conhecimento decorrente da carne”. O conhecimento verdadeiro de Cristo é um encontro com ele, na palavra do querigma, como alguém que chama o homem para uma existência significativa. Assim, Bultmann elimina da cristologia* o “Jesus da história” (ver Jesus histórico*); o interesse histórico pela personalidade e pelos atos de Jesus não pode nem deve ser satisfeito, uma vez que simplesmente fornece ocasião para a evasão do homem da conclamação feita por Deus, a fim de se voltar a realidades objetivas. Do mesmo modo que Martin Kahler*, cujo livro The So-Called Historical Jesus and the Historie, Biblical Christ [Ο chamado Jesus histórico e o Cristo histórico e bíblico] o influenciou profundamente, Bultmann considera ser objetivo da cristologia o “Cristo da fé”, o Cristo que pode ser encontrado mais na existência do crente (ou, como protestantes mais antigos afirmariam, nos benefícios auferidos pelo crente) do que na observação histórica abstrata.

Conquanto a influência de Bultmann sobre o curso da teologia do século XX e sobre a interpretação bíblica tenha sido imensa, a erudição bíblica subsequente modificou muito de seu ceticismo histórico. Muitos de seus seguidores, associados à chamada “nova busca do Jesus histórico” (tais como E. Kásemann*, E. Fuchs, 1903-1983, e G. Ebeling), encontraram uma âncora histórica mais forte para o querigma na história de Jesus do que Bultmann se permitiu; outros têm criticado radicalmente sua lei- tura do NT por refletir influências do gnosticismo e helenismo sobre o cristianismo primitivo.

Em teologia sistemática e em filosofia, Bultmann recolocou acentuadamente algumas questões fundamentais concernentes à relação da fé para com a história e a natureza da presença e ação divinas de modo que seu pensamento permanece fundamentalmente determinante para algumas reflexões teológicas contemporâneas. Ele buscou, consistentemente, construir uma teologia em que a questão de Deus e a questão da existência humana fossem inseparáveis. Mas, em razão de suas raízes históricas no luteranismo e da influência tanto da filosofia dualista quanto da existencialista*, encontrou muita dificuldade em falar da transcendência de Deus e sua ação na história humana, uma vez que sempre suspeitou que tal discurso fosse objetificante. Sua teologia é considerada por muitos como carente de qualquer referência ontológica na interpretação da fé cristã, sendo desse modo radical- mente subjetiva, transformando afirmações a respeito de Deus em afirmações a respeito do homem. Conquanto isso possa ser verdadeiro em alguns dos seguidores de Bultmann, como H. Braun (n. 1903) e F. Buri (n. 1907), o próprio Bultmann, no entanto, sempre lutou pela necessidade de falar de Deus, mesmo que só de forma paradoxal. “O fato de Deus não poder ser visto ou apreendido fora da fé não significa que ele não exista fora da fé” (Jesus Christ and Mythology [Jesus Cristo e mitologia], p. 72).

Juntamente com seu contemporâneo mais chegado, Karl Barth, Bultmann decisivamente reformou o cenário da teologia protestante, e sua obra continua a estabelecer os termos de referência para algumas tradições teológicas.


Bibliografia

Obras: Essays (London, 1955); Existence and Faith (London,1964); Faith and Understanding (London, 1969); The Gospel of John (Oxford, 1971); History and Eschatology (Edinburgh, 1957); The History of the Synoptic Tradition (London, 1963); Jesus and the Word (London, 21958); Jesus Christ and Mythology (London, 1960); Primitive Christianity (London, 1960); Theology of the New Testament, 2 vols. (London, 1952, 1955). Estudos: H. R. Bartsch (ed.), Kerygma and Myth, 2 vols. (London, 1962, 1964); G. Ebeling, Theology and Proclamation (London, 1966); R. A. Johnson, The Origins of Demythologizing (Leiden, 1974); C. W. Kegley (ed.), The Theology of Rudolf Bultmann (London, 1966); J. Macquarrie, An Existentialist Theology (London, 1955); idem, The Scope of Demythologizing (London, 1960); S. M. Ogden, Christ without Myth (London, 1962); H. P. Owen, Revelation and Existence (Cardiff, 1957); R. C. Roberts, Rudolf Bultmann’s Theology (London, 1977); J. M. Robinson, A New Quest of the Historical Jesus (London, 1963); W. Schmithals, An Introduction to the Theology of Rudolf Bultmann (London, 1968); A. C. Thiselton, The Two Horizons (Exeter, 1980).