Dualismo Escatológico no Novo Testamento

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Os profetas do Antigo Testamento ansiavam pelo Dia do Senhor e por uma visitação divina para purificar o mundo do mal e do pecado, e para estabelecer o Reino perfeito de Deus na terra. No Antigo Testamento encontramos, pois, um contraste entre a presente ordem de coisas e a ordem redimida do Reino de Deus.[1] A diferença entre a antiga e a nova ordem é discutida em termos diferentes, com graus diferentes de continuidade e descontinuidade entre as duas; Amós (9:13-15) descreve o Reino utilizando termos bem peculiares deste mundo, mas Isaías vê a nova ordem como novos céus e uma nova terra (Is. 65:17).

A idéia de uma nova ordem redimida é descrita em termos diferentes na literatura mais recente do judaísmo. Algumas vezes o Reino de Deus é descrito em termos bem terrenos, como se a nova ordem significasse simplesmente o aperfeiçoamento da antiga ordem,[2] outras vezes envolve uma transformação radical da antiga ordem de tal forma que a nova ordem é descrita em uma linguagem transcendental.[3] Em alguns apocalipses posteriores, verifica-se primeiramente a existência de um reino temporal terreno, seguido por uma nova ordem transformada e eterna.[4] Em algum ponto desse desenvolvimento histórico emergiu uma nova expressão - esta Era e o século futuro.[5] Não temos condições de estabelecer com precisão a história dessa expressão.

A primeira evidência disponível encontra-se em 1 Enoque 71:15, em que há uma referência ao “mundo vindouro”, provavelmente representando o hebraico `ôlãm habbã' - o século futuro.[6] A expressão surge em sua plena extensão na literatura judaica somente no primeiro século d.C. nos livros 4 Esdras (= 2 Esd.) e Apocalipse de Baruque.[7]

A expressão relacionada às duas Eras tornou-se comum na literatura rabínica, iniciando com Pirke Aboth, que contém expressões e ensinamentos dos rabinos que datam do terceiro século a.C.° A mais recente dessas referências não parece ser anterior ao final do primeiro século d.C.[9]

Qualquer que seja a origem da expressão específica, a idéia que ela expressa remonta até o contraste que o Antigo Testamento apresenta entre o mundo presente e a ordem redimida do futuro. Ela fornece o esquema de referência para a completa mensagem e ministério de Jesus Cristo, como registrados pelos Evangelhos Sinópticos. A expressão plena aparece em Mateus 12:32: “...se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste século nem no futuro”. Embora a frase colocada nesse lugar se pareça com uma formulação de Mateus,[10] ela também aparece na questão do mancebo rico sobre como alcançar a vida eterna. Na discussão a seguir, com os seus discípulos, Jesus contrasta a situação deles “neste tempo” com a vida eterna que experimentarão “no século futuro” (Mc.10:30). A frase “este tempo” (en tõ kairõ toutõ) é um sinônimo para “esta era” (ver Rm. 8:18).

Cullmann expressa corretamente o ponto de vista de que o dualismo escatológico representa a sub-estrutura da história da redenção. O Novo Testamento não tem uma palavra apropriada para expressar o conceito de “eternidade”, e não devemos pensar a respeito da eternidade como os gregos, como se não estivesse relacionada ao tempo. No pensamento bíblico, a eternidade significa o tempo sem fim. No helenismo, os homens ansiavam pela libertação do ciclo do tempo em um mundo além, onde não houvesse tempo,[12] mas no pensamento bíblico o vocábulo tempo descreve a esfera da existência humana tanto agora como no futuro. A impressão dada pela tradução BJ em Apocalipse 10:6, “já não haverá mais tempo”, não é mesma que a da RC, “não haveria mais demora”, mais bem traduzida. O Novo Testamento como um todo expressa a idéia de eternidade pela frase eis ton aiõna, traduzida por "no eterno" (Mc. 3:29), ou eis tons aiõnas (Lc. 1:33, 55), e algumas vezes eis toils aiõnas tõn aiõnõn (Hbl.8 Gl. 1:5; 1 Pe. 4:11; Ap.1:18) - “séculos dos séculos” (Hbl.8), traduzida por “para todo o sempre” (Gl. 1:5; 1 Pe. 4:11; Ap.1:18).

O século futuro e o Reino de Deus são termos algumas vezes utilizados de modo permutável. Em resposta à pergunta do jovem rico sobre como alcançar a vida eterna, Jesus respondeu que o século futuro é a vida eterna (Mc.10:30). O século futuro é sempre observado do ponto de vista do propósito redentor de Deus em relação aos homens, e não do ponto de vista da injustiça. O pertencer a “aquela era”, isto é, ao século futuro, é uma bênção reservada para o povo de Deus. Esse século será inaugurado pela ressurreição dos mortos (Lc. 20:35), e é a era em que a morte já não mais existirá. Os que alcançarem aquele século serão como os anjos pelo fato de que serão imortais. Somente então eles hão de experimentar o pleno significado de serem filhos de Deus (Lc. 20:34-36). A vida da ressurreição conseqüentemente é a vida eterna - a vida do século futuro - a vida do Reino de Deus.

A ressurreição não é a única marca a assinalar a transição desta era para o século futuro; a parousia de Cristo assinalará o fim da era presente (Mt. 24:3). O Filho do Homem virá com poder e grande glória e enviará os seus anjos para que reúnam os eleitos dos quatro cantos da terra, para entrarem no Reino de Deus (Mt. 24:30-31).

A versão que Mateus apresenta sobre as parábolas do Reino fala três vezes do fim da Era presente (Mt.13:39, 40, 49), mas o conceito é consistente em todos os Evangelhos. A parábola do trigo e do joio (Mt.13:36-43) contrasta a situação nesta Era com a que existirá no Reino de Deus. Na Era atual, o trigo e o joio - filhos do Reino e filhos do maligno - convivem juntos em uma sociedade mista. A separação dos ímpios dos justos somente ocorrerá por ocasião da colheita - que é o juízo. Então tudo o que causa escândalo e todos os que praticam a iniqüidade serão excluídos do Reino de Deus e sofrerão o julgamento divino, ao passo que “os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai” (Mt. 13:42, 43).

O caráter da Era presente é tal que permanece em oposição ao século futuro e ao Reino de Deus. Isto é demonstrado na parábola dos diferentes tipos de solo. O semeador lança a semente, que é “a palavra do reino” (Mt.13:19). A palavra parece enraizar-se em muitas vidas, mas os cuidados da Era presente (Mc. 4:19; Mt. 13:22) sufocam a palavra e ela se torna infrutífera. Segundo esse ponto de vista, esta Era não é pecaminosa em si mesma; mas quando as preocupações da vida, características desta Era, tornam-se o objeto principal de interesse, a ponto dos homens negligenciarem a mensagem do Reino de Deus, ela se torna uma Era pecaminosa.

Paulo vai além do registro das expressões de Jesus e fala sobre o “presente século mau” (Gl. 1:4). A sabedoria desta Era não pode alcançar a Deus (1 Co. 2:6). Ele exorta os cristãos de Roma a não se conformarem com o presente século, mas a se transformarem por um novo poder, que se encontra em operação naqueles que crêem em Cristo (Rm.12:2). Todas estas expressões são consistentes com o conceito de duas Eras que aparecem nos Sinópticos.

Nesse dualismo escatológico, Jesus e Paulo partilhavam a mesma perspectiva com relação ao mundo que prevaleceu no judaísmo, que é essencialmente uma perspectiva apocalíptica da história. Alguns estudiosos defendem o ponto de vista de que tal perspectiva não representa um desenvolvimento natural da verdadeira esperança profética hebraica, que aguardava um reino terreno dentro da história. Entretanto, pode-se argumentar que a esperança profética do Antigo Testamento sobre a vinda do Reino sempre envolveu uma irrupção catastrófica de Deus na história, bem como a continuidade e a descontinuidade da antiga ordem.[13] G. Vos acreditava que este dualismo escatológico, que foi desenvolvido no judaísmo, foi incorporado por revelação divina aos escritos da Era do Novo Testamento.[14] Assim, foi um desenvolvimento natural da esperança profética do Antigo Testamento.

Em resumo, esta Era presente, que abrange o período desde a criação até o Dia do Senhor, que nos Evangelhos é designada em termos da parousia de Cristo, a ressurreição e o julgamento, é a Era da existência humana em fraqueza e mortalidade, do mal, do pecado e da morte. O século futuro será a realização de tudo aquilo que o Reino de Deus significa - será a Era da ressurreição para a vida eterna no Reino de Deus. Tudo, nos Evangelhos, aponta para a idéia de que a vida no Reino de Deus no século futuro será uma vida na terra - porém uma vida transformada pelo domínio real de Deus quando seu povo começar a desfrutar as bênçãos divinas em toda sua plenitude (Mt. 19:28).

Portanto, quando Jesus proclamou a vinda do Reino de Deus, Ele o fez baseado no pensamento hebreu-judaico que se caracterizava por considerar os homens vivendo em uma situação dominada pelo pecado, pelo mal e pela morte, da qual precisavam ser resgatados. Sua proclamação do Reino inclui a esperança, cuja mensagem enfática tem sua origem no tempo dos profetas do Antigo Testamento, que antecipa uma nova Era, na qual todos os males da Era presente serão extintos da existência humana e terrena pelo ato expresso de Deus.


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NOTAS

1. A frase “O Reino de Deus” não é utilizada no Antigo Testamento para descrever a nova ordem que é introduzida pelo Dia do Senhor, porém tal idéia flui em meio aos profetas. Veja J. Bright, The Kingdom of God (1953).
2. Veja 1 En. 1-36; Salmos de Salomão 17, 18.
3.1 En. 37-71.
4. 4 Ez. 7:28 e ss.; Ap. de Baruque 40:3.
5. Infelizmente, os conceitos envolvidos nesta terminologia são freqüentemente obscurecidos pois o termo aiõn (Heb. 'ôlãm) é traduzido como “mundo” e não como “era”. Não acho relevante para nosso público.6. H. Sasse, TDNT 1:207. Sasse pensa que a expressão em 1 En. 48:7 “este mundo de injustiça” também incorpora essa mesma expressão. Veja também 1 En. 16:1, “esta era será consumada”.
7. Veja 4 Ez. 7:50, “O Altíssimo não criou apenas uma era, mas duas” (conforme a tradução de G. H. Box); 8:1, “Esta era foi preparada pelo Altíssimo para muitos, porém a vindoura, para poucos”. Veja também 4 Ez. 7:113; Ap. Bar. 14:13; 15:7.
8. Veja Pirke Aboth 4:1, 21, 22; 6:4, 7.
9. P. Volz, Die Eschatologie der jüdischen Gemeinde (1934), pg. 65. Aboth 2:7, que se refere à “vida na século futuro”, e que deve reportar-se a Hillel, no primeiro século a.C.; Veja G. Dalman, The Words of Jesus (1909), 150.
10. Mc. 3:29 diz “será réu do eterno juízo”.
11. O. Cullmann, Christ and Time (1950), 37 e ss.
12. E. Jenni, “Time,” IDB 4:648.
13. Este é um dos principais argumentos no capítulo que trata da promessa contida no Antigo Testamento, na obra do autor entitulada Jesus and the Kingdom (1964).
14. G. Vos, The Pauline Eschatology (1952), 28.


FONTE: Teologia do Novo Testamento - Ladd, George Eldon.