Comentário Teológico do Evangelho de João

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COMENTÁRIO TEOLÓGICO DO EVANGELHO DE JOÃO

O evangelho de João apresenta quatro ênfases teológicas: o ensino sobre Jesus (cristologia), o ensino sobre a salvação do homem (soteriologia), o ensino sobre a igreja (eclesiologia) e o ensino sobre as últimas coisas (escatologia). Esses elementos não estão desconexos no texto, mas interrelacionados, como vamos mostrar em seguida.

A cristologia em João tem o objetivo de demonstrar que Jesus é o filho de Deus (cf. Jo 20.31). O Cristo, o Messias esperado pelo povo judeu, é anunciado desde o início como o filho de Deus (Jo 1.17,41,49), o que ultrapassa todas as expectativas. Ele é o Filho na sua plenitude (cf. 1Jo 1.3; 3.8,23; 4.9,15 e outros).

Mas isso não está em contradição com a apresentação de Marcos, que tentou esconder cuidadosamente o mistério da pessoa de Jesus para evitar que ele fosse reconhecido muito cedo como o Messias? Se examinarmos com mais atenção as palavras de Jesus no evangelho de João, perceberemos que Jesus nunca se autoproclamou Messias. É verdade que os outros lhe deram esse título, como também os sinópticos relatam (Jo 4.25; 7.25-31; 7.41s; 10.24; 11.27; 12.34). Mas Jesus evitou se fundamentar nesse título. Somente a uma mulher em Samaria ele admitiu ser o Messias (Jo 4.26). Nos outros ouvintes ele não confiava (Jo 2.24). Sempre que queriam aclamá-lo rei, ele se retirava (Jo 6.14s.).

No evangelho de João, Jesus se identifica como filho de Deus desde o início, descrevendo, desta forma, o seu relacionamento especial com o Pai, que nos sinópticos só é indicado, mas não omitido. João mostra que é exatamente neste ponto que surge o conflito entre Jesus e a liderança judaica.

Em que o evangelista baseia essa tradição? Ele mesmo encontrou o filho de Deus que se tornou homem e viu nos seus sinais a glória de Deus (Jo 1.14). Ele participou do evento em que Jesus fez o cego de nascença ver de novo (Jo 9.5,39) e esteve presente quando Jesus ressuscitou o morto (Jo 11.25s). Ele ouviu as declarações do “Eu sou” em que Jesus disse que era o pão da vida (Jo 6.35), a luz do mundo (Jo 8.12), a porta para o rebanho (Jo 10.7), o bom pastor (Jo 10.11), a ressurreição e a vida (Jo 11.25), o caminho, a verdade e a vida (Jo 14.6), a videira verdadeira (Jo 15.1), um rei (Jo 18.37). Até esta última, todas as declarações do “eu sou” são precedidas pelo artigo definido. Jesus é a luz; além dele o mundo não tem luz. Jesus é o pão; sem ele o mundo morre de fome. Jesus é o caminho; não há outro caminho para Deus. Jesus é a verdade; além dele não há outras verdades. Jesus é a vida; todas as outras propostas levam à morte. Essa reivindicação de Jesus pelo absoluto é a verdadeira razão para a condenação à morte, que o sinédrio judeu declarou para Jesus (Jo 19.7).

Todas essas palavras tão cheias de significado e de desafios apontam para os ouvintes: eles devem crer em Jesus, segui-lo, permitir que ele lhes mostre o caminho para Deus. As reivindicações que Jesus faz para si não são um objetivo em si, mas contribuem para a salvação dos ouvintes e leitores. Nesse sentido, a cristologia do evangelho de João serve à soteriologia. Por outro lado, vale dizer também que a soteriologia só alcança o seu objetivo por estar fundamentada nessa cristologia.

O que é especialmente marcante na soteriologia desse quarto evangelho? Três pontos serão ressaltados: A universalidade da salvação (a salvação é para todos), a morte substitutiva de Jesus na cruz e o chamado à fé.

A soteriologia de João é marcada pela universalidade pois aqui se trata da salvação do mundo: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu filho unigênito para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3.16). Os samaritanos reconheceram esta verdade ao se convenceram de que ele era de fato o Messias quando afirmaram: “este é verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo 4.42). Por meio da sua vinda, vida e morte ele abriu o caminho para a salvação de todos que cressem nele. Assim fica claro que essa universalidade não é igual ao universalismo (no final Deus vai achar uma forma de salvar a todos). Sem fé e relacionamento pessoal com Deus não há acesso à salvação.

O fundamento para a salvação de todos os que crêem é a morte substitutiva de Jesus Cristo. Alguns expositores negam o fato de que no evangelho de João a morte de Jesus tem importância central. Mesmo assim eu continuo crendo na unidade do evangelho e, portanto, na interpretação da morte de Jesus como afirmada por João Batista: “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (Jo 1.29). A isso corresponde a interpretação que Jesus dá ao pão quando diz: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; … o pão que eu darei pela vida do mundo, é a minha carne” (Jo 6.51). As tentativas de atribuir esses trechos à redação da igreja antiga não têm fundamento com base na tradição dos manuscritos.

É importante notar também o grande valor que João dá ao chamado à fé: João 3.16,36; 5.24; 6.40,47 e outros. Mas que significa fé, em João? Freqüentemente encontramos em João conceitos como crer e reconhecer, crer e confessar, lado a lado. Disso podemos concluir o seguinte: crer significa reconhecer as palavras de Jesus como vindas de Deus, que as revelou, e assim também reconhecer e se associar à pessoa de Jesus.

Isso não esgota o assunto, como assinala Schnackenburg: “De uma interpretação mais acurada concluímos que a fé joanina não significa somente uma decisão existencial em reação ao convite do Deus que se revela, mas é, também, e acima de tudo, uma ligação com aquele que traz a salvação; é discipulado em que o fiel segue aquele que abriu o caminho, e é o mediador da salvação.”21 A este contexto pertencem as expressões “estar em Cristo”, “permanecer em Cristo” e “dar frutos”.

A soteriologia em João é caracterizada pela universalidade porque diz respeito a todos. Mas ela indica para a fé e para o discipulado do indivíduo. A morte de Jesus recebe importância central para a salvação do mundo. Ela é interpretada como morte vicária e vitória sobre todos os poderes inimigos de Deus (Jo 19.30).

Que significado a igreja tem para os crentes? Será que nesse evangelho temos orientações para a eclesiologia? Ou João diz respeito somente ao indivíduo e ao seu relacionamento pessoal com o filho de Deus?

O termo igreja não aparece no quarto evangelho. Mas será que ele omite o conceito igreja? Quem lê os capítulos 10; 15; 17; 20.19-23 e 21 dificilmente chegará a essa conclusão. O discurso do pastor (“Eu sou o bom pastor”) realça o relacionamento de Jesus com aqueles que o Pai lhe confiou. São representados pelo rebanho que o pastor pastoreia. Ele sabe que é responsável por essa comunidade. O discurso da videira (“Eu sou a videira verdadeira”) fala da ligação entre os ramos e a videira. Não podem existir independentes um do outro. A oração sacerdotal descreve a intercessão de Jesus pelo seu círculo mais próximo de discípulos e também por todos aqueles que, por meio desse círculo, vieram a crer em Jesus. O objetivo de Jesus é que sejam um. Ele capacita esse círculo de discípulos com o Espírito Santo, com a autoridade para perdoar pecados e os envia ao mundo. Ele celebra a ceia com esse círculo. Ele consagra Pedro como pastor para esse grupo.

É evidente que no evangelho de João a eclesiologia não é um tema isolado e independente. Ela está intimamente relacionada com a cristologia. A eclesiologia surge quando nos associamos com a pessoa de Jesus por meio da fé.

Dos sinais da graça só se fala perifericamente: de forma indicativa sobre o batismo em João 3.5 e da ceia em João 6.54-56. Os dois textos, no entanto, necessitam de uma interpretação acurada. Somente podemos fazer algumas sugestões: “nascer da água” não podia estar relacionado com o batismo cristão pelo interlocutor de Jesus, muito menos o batismo infantil, praticado hoje. Ele estava pensando mais no batismo de João, que também tinha sentido na mente dos leitores do evangelho (Jo 1.15-28). As palavras sobre a ceia em João 6.54-56 estão relacionadas com o discurso sobre o pão da vida, que é um chamado à fé em Jesus. Uma equiparação automática das indicações sobre os sinais da graça descritos em João com o batismo e a celebração da ceia de hoje, pode levar a erros grosseiros de interpretação.

Já foi mencionado que no quarto evangelho a escatologia presente está em constante tensão com a escatologia futura. Por um lado, Jesus proclama: “Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida” (Jo 5.24). Isso parece indicar que para o crente a morte está vencida e a vida eterna tomou o seu lugar. Por outro lado, Jesus anuncia aos seus seguidores a vida eterna no futuro quando diz: “De fato a vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6.40). Essa tensão entre a salvação que já começou com o que há de se cumprir ainda, é compartilhada também pelos escritos paulinos. Certamente a ênfase na salvação no tempo presente é mais forte em João do que em qualquer outro escrito do NT. Mas mesmo assim, o evangelista não omitiu o que ainda vai se cumprir: a ressurreição dos mortos (Jo 6.40), o juízo vindouro (Jo 5.28,29) e a volta de Jesus (Jo 21.22). Mas o seu tema principal continua a presença da salvação de Deus na pessoa de Jesus Cristo.

Essa pessoa é o centro da teologia deste evangelista. A soteriologia, a eclesiologia e a escatologia de João precisam ser interpretadas por esse prisma. A característica principal do quarto evangelho é essa teologia com o seu centro cristológico.