Estudo sobre Isaías 6

Isaías 6

Isaías e o rei Acaz (6.1—12.6)
O cerne dos caps. 6—12 é considerado em geral o “testemunho” (8.16, ARA; a NVI traz “mandamento”; “documento”, CNBB) de Isaías, um documento que ele mesmo esboçou como uma acusação de infidelidade da corte e da nação. Enquanto os caps. 1—5 retrataram a decadência moral geral da nação, os caps. 6—12 se ocupam com a demonstração de como a palavra de Deus foi desobedecida numa situação histórica específica, ou seja, a crise repentina causada pela invasão de Judá realizada pelos exércitos israelitas e dos arameus. O material autobiográfico mostra com que força o próprio Isaías se empenhou em persuadir o rei a adotar políticas diferentes, e assim serve para destacar que os líderes de Jerusalém não caíram em infidelidade acidental e inconsciente, mas com determinação deliberada e com premedita-ção rejeitaram a palavra de Deus para eles.

Todo esse material triste ainda está aí como advertência, mas o leitor recebe um retrato mais acabado pelo fato de que algumas das predições mais alegres de Isaías são dadas lado a lado com essas denúncias.

O chamado do profeta para o ministério (6.1-13)
Nesse capítulo, encontramos o próprio profeta pela primeira vez. Nos capítulos seguintes, encontramos mais alguns episódios da sua vida e atividade, e diversos autores sugerem (e.g., Kaiser) que 6.1—9.7 era o ”testemunho” (mandamento, NVI) a que o profeta faz alusão em 8.16. Certamente é a seção mais pessoal de todo o livro (exceto caps. 36—39, que estão relacionados a um período bem tardio do ministério de Isaías). Por outro lado, é desnecessário supor que a narrativa do chamado do profeta deva ter estado no início do documento que a continha, por mais lógico que isso possa nos parecer. Grande parte do material dos caps. 2—5 também pertence a uma data antiga do ministério de Isaías, e uma parte dele também pode ter feito parte do seu “testemunho”.

Questiona-se às vezes se a comissão outorgada a Isaías no cap. 6 foi necessariamente o seu chamado inicial; mas não há razão forte o suficiente para se duvidar disso (v. a discussão em Young, adloc.). Além disso, Is 6 pode ser comparado com as narrativas do chamado de Jeremias e de Ezequiel; as três passagens têm a extraordinária característica comum de que o profeta é advertido em cada caso, logo no início do seu ministério, acerca das reações hostis que vai encontrar (cf. Jr 1.18,19; Ez 2.4-7). R. E. Glements sugere que essa característica repetida tinha “a intenção de suavizar a objeção de que se a mensagem tivesse realmente vindo de Deus o povo lhe teria dado ouvidos [...]. Essas narrativas mostram que a recusa em ouvir o profeta não lança dúvidas sobre a verdade das palavras do profeta; antes, a confirmam” (Prophecy and Tradition, p. 35).

C. R. North ressaltou que as ênfases extraordinárias na teologia de Isaías já estão explícitas ou implícitas no relato do seu chamado (IBD II, p. 733, “Isaías”). Para ele, essas ênfases são: a soberania de Javé, a santidade de Javé, o pecado humano, a fé em Javé, o remanescente e o Messias, v. 1-8. Aqui temos a descrição da visão de Isaías. Pelo que sabemos, a experiência toda pode ter sido visionária, e o templo (v. 1) pode significar a moradia celestial de Deus; mas é tentador crer que Isaías estava fisicamente presente no templo de Jerusalém nesse momento, e viu uma realidade espiritual negada ao restante dos adoradores (v. 10), a maioria dos quais estava satisfeita com os aspectos exteriores da adoração (cf. 1.10-17). A fumaça (v. 4) pode estar relacionada ao fogo do altar; será que o altar em Sl tendia a esconder Deus dos olhos dos adoradores?

Deus é visto como o eterno Rei, entronizado no meio dos seus cortesãos (talvez isso em Sl já fosse uma representação tradicional; cf. lRs 22.19), em contraste com o rei de Judá, Uzias, cujo longo e próspero reinado estava chegando ao final. Os cortesãos e líderes de Judá já foram retratados como ímpios e condenados (3.14,15; 4.14); os cortesãos de Javé, ao contrário, estão preocupados somente com a sua santidade e glória. São chamados serafins, um termo singular a esse texto no AT ; em outros textos, a palavra hebraica denota serpentes, como em Nm 21.6, e é possível que se imaginem as criaturas como serpentes aladas.

O brado tríplice dos serafins “Santo, santo, santo” (como Galvino reconheceu, não há razão para encontrar nisso uma alusão à Trindade) dá destaque ao fato por meio da repetição, e a reação muito natural e apropriada do profeta foi perceber e confessar a sua impureza e a de seu povo. A referência a lábios impuros certamente não é para sugerir que os seus atos eram mais santos do que suas palavras; os lábios são destacados e mencionados porque a palavra falada era a ocupação do profeta — assim Isaías reconheceu a sua indignidade de ser profeta; é interessante notar as semelhanças e os contrastes entre o chamado de Isaías e o de Jeremias (cf. Jr 1.4-10). Ao contrário de Jeremias, Isaías mostrou disposição imediata para agir como profeta depois que os seus lábios foram simbolicamente purificados.

v. 9-13. Os ensinamentos que o profeta deveria transmitir ao povo de Judá não são indicados aqui (afinal, eles estão em todo o restante do livro); mas é o efeito desses ensinos que é colocado diante do leitor. Ao observarmos isso pelos olhos da história, sabemos que muito poucos em Judá deram atenção às palavras de Isaías, e que uma longa época de desastres políticos para Judá começou durante o transcorrer do seu ministério. Mas Isaías não precisou observar isso pela lente da história; já no seu chamado ficou claro para ele que o seu ministério seria notadamente impopular na sua geração, mas que o próprio fracasso estava ordenado por Deus: aliás, aos olhos de Deus não seria fracasso. Paradoxalmente, o fracasso em convencer o seu público seria a prova de que ele era um verdadeiro profeta!

Não podemos tentar suavizar a dificuldade teológica ao falarmos de vontade “permissiva” de Deus; a desobediência e o castigo subsequente do seu povo não foi algo periférico mas central no plano divino. Por outro lado, não devemos supor que Deus tenha forçado israelitas obedientes em potencial à desobediência. Podemos encontrar um paralelo nos capítulos iniciais de Êxodo, em que se diz algumas vezes que o faraó endureceu o seu próprio coração (e.g., Êx 7.22,23), e que outras vezes o seu coração foi endurecido por Deus (e.g. 9.12). Em Is 6, o ponto teológico é que homens teimosos, em virtude de sua arrogância, foram impotentes para frustrar as intenções do Todo-poderoso. A resposta de Isaías (v. 11) foi equivalente a um apelo a favor do seu povo; mas o apelo foi em vão. O único raio de esperança aparece no final do v. 13, um versículo obscuro e textualmente incerto. O início do versículo não dá esperança alguma; mesmo que um décimo sobreviva à invasão e à deportação dos v. 11,12, não estará seguro, pois um novo desastre vai cair sobre o povo. Por outro lado, até mesmo uma árvore derrubada deixa uma parte do tronco (“toco”, NTLH) para trás, que pode se tornar a semente para um novo crescimento. Na NTLH, a última frase do v. 13 está fora da citação; em outras palavras, é um comentário editorial acerca do símile na comissão. A NEB a omite completamente, visto que não está na LXX. O versículo como um todo pode ser comparado com 10.33—11.1 (q.v.). A santa semente provavelmente é tanto o Messias quanto o remanescente justo do povo de Deus.