Rute — Um Estudo Devocional

Rute — Um Estudo Devocional
Rute — Um Estudo Devocional

A
noite já caíra e um sossego tranquilo descera sobre Belém, em Judá, e sobre as vizinhanças. Numa eira, num dos campos, está dormindo um homem já de certa idade. Mas, lá vem sorrateiramente uma jovem mulher, que lhe descobre os pés um pouco e se deita ali. O homem desperta, e, vendo-a aos seus pés, pergunta: “Quem és?” A resposta dela? “Sou Rute, tua escrava.” Viera a ele com um objetivo especial e muito nobre. De fato, reconhecendo a virtude dela, no prosseguimento da palestra, ele observa: “Todos no portão do meu povo se apercebem de que és uma mulher de bem.” — Rute 3:9-11.
O que levou a tal encontro incomum à meia-noite? Quem era mesmo esta mulher? E quem era o homem já de certa idade? Por que diz que ela é conhecida como “mulher de bem”? Que qualidades demonstra ela? Estas e outras perguntas nos vem à mente, ao pensarmos nesta extraordinária cena noturna.
A narrativa, divinamente inspirada, que vamos considerar, provavelmente escrita nos dias de Davi (por volta de 1090 A. E. C.) pelo profeta hebreu Samuel, é singular por ser um dos únicos dois livros da Bíblia que levam nome de mulher. (O outro é Ester.) Embora alguns encarem o livro de Rute como comovente história de amor, é muito mais do que isso. A narrativa salienta o objetivo de Deus, de produzir o herdeiro do Reino, o há muito prometido Messias. Outrossim, enaltece a benevolência de Deus. — Gên. 3:15; Rute 2:20; 4:17-22.

SOBREVÉM ADVERSIDADE!
Os acontecimentos relatados nesta narrativa ocorreram “nos dias em que os juízes administravam a justiça” em Israel. Deve ter sido logo cedo neste período, porque o homem observado na eira com Rute era Boaz, filho de Raabe, dos dias de Josué. (Rute 1:1; Jos. 2:1, 2; Mat. 1:5) O desenrolar desta curiosa história abrange uns 11 anos, talvez por volta de 1300 A. E. C.
Uma fome sobreviera à terra de Judá, atingindo Belém (ou Efrata). A adversidade afligiu especialmente certo homem chamado Elimeleque. Reconhecendo que precisava prover as necessidades da vida para os seus, ele tomou uma ação decisiva. Em pouco tempo, Elimeleque, sua esposa Noemi, e os dois filhos deles, Malom e Quiliom, puderam ser vistos cruzando o rio Jordão. Estes efratitas tornaram-se assim residentes forasteiros em Moabe, um país no planalto ao leste do Mar Morto e ao sul do rio Árnon. — Rute 1:1, 2; veja 1 Timóteo 5:8.
Com o tempo, Elimeleque faleceu, deixando Noemi como viúva idosa. Mais tarde, os dois filhos deles contraíram núpcias com moças moabitas. Malom casou-se com Rute, e Quiliom tomou Orpa por esposa. (Rute 1:4, 5; 4:10) Passaram-se 10 anos, e então sobreveio novamente uma calamidade. Ambos os filhos de Noemi morreram, não deixando filhos. As três mulheres ficaram assim sozinhas, e o luto e a viuvez certamente não são nada fáceis de suportar.
Especialmente Noemi ficou triste. Ela era judia e conhecia a bênção especial no leito de morte que o patriarca Jacó proferira sobre seu filho Judá, nas seguintes palavras: “O cetro não se afastará de Judá, nem o bastão de comandante de entre os seus pés, até que venha Siló; e a ele pertencerá a obediência dos povos.” Este Siló teria o cetro real — de fato, seria o Messias, o Descendente de Abraão, por meio de quem todas as famílias da terra hão de ser abençoadas. Ora, havia a possibilidade de mulheres de Judá darem à luz filhos que seriam os antepassados do Ungido! Mas, os filhos de Noemi haviam morrido sem descendentes, e ela já estava além da idade de ter filhos. A possibilidade de Noemi e sua família poderem contribuir para a linhagem messiânica parecia remota. — Rute 1:3-5; Gên. 22:17, 18; 49:10, 33.
Contudo, havia pelo menos um vislumbre de esperança de algo bom no futuro. Noemi soube, talvez de alguns mercadores viajantes, hebreus, que “Yahweh voltara a sua atenção para seu povo, dando-lhes pão”. Sim, a fome havia acabado, e, com a bênção divina, havia novamente pão em Judá, alimento sadio em Belém, a “casa do pão”. Não demorou muito até que as três mulheres enlutadas seguissem “andando pela estrada para . . . a terra de Judá”. Não era viagem fácil, porque tinham de atravessar uma região usualmente infestada de ladrões e homens desesperados. Mas, a devoção de Noemi a Deus e o anelo de estar com o seu povo impeliram-na avante, apesar dos perigos ao longo do caminho. — Rute 1:6, 7.

TEMPO DE DECISÃO
Seriam as viúvas jovens apenas corteses em acompanhar sua idosa sogra até a fronteira de Moabe com Israel? Ou iriam mais longe? Veremos. Em certo ponto da estrada, Noemi disse: “Ide, voltai, cada uma à casa de sua mãe.” (Rute 1:8) Por que à “sua mãe”, quando pelo menos o pai de Rute ainda vivia? (Rute 2:11) Bem, era um comentário natural, de uma mulher idosa a mulheres mais jovens, e as mães delas tinham lares bem estabelecidos, diferentes da sua sogra indigente. De qualquer modo, o afeto maternal seria especialmente consolador para uma filha triste.
Escutemos Noemi prosseguir: “Que Yahweh use de benevolência para convosco assim como vós usastes de benevolência para com os homens agora já mortos e para comigo. Que Yahweh vos dê uma dádiva, e achai deveras um lugar de descanso, cada uma na casa de seu esposo.” (Rute 1:8, 9) As duas mulheres moabitas haviam demonstrado benevolência, ou amor leal, para com Noemi e seus falecidos maridos. Não haviam sido como as mulheres hititas de Esaú, que “eram uma fonte de amargura de espírito para Isaque e Rebeca”. (Gên. 26:34, 35) Visto que a própria Noemi estava então privada de bens, ela só podia esperar que Deus recompensasse suas noras. E estava disposta a despedir-se delas, na esperança de que Deus desse a cada jovem o descanso e conforto provenientes dum marido e dum lar, ficando assim livres da viuvez e da tristeza.
Mas Rute e Orpa não se afastaram. Quando Noemi as beijou, começaram a elevar a voz e a chorar. Obviamente, ela havia sido uma sogra bondosa e amorosa, de quem era doloroso despedir-se. (Rute 1:8-10; veja Atos 20:36-38.) No entanto, Noemi persistiu, argumentando: “Acaso ainda tenho filhos nas minhas entranhas e teriam de tornar-se eles os vossos maridos? Voltai, minhas filhas, ide, pois fiquei velha demais para vir a pertencer a um esposo. Se eu dissesse que também tenho esperança de certamente vir a ser hoje de noite de um esposo e também de certamente dar à luz filhos, ficaríeis esperando por eles até crescerem? Manter-vos-íeis isoladas para eles para não virdes a ser de algum esposo?” Sim, mesmo que os falecidos filhos de Noemi fossem substituídos por novos filhos e estes crescessem, será que essas mulheres jovens deixariam de se casar com alguém no ínterim? Não seria razoável pensar assim. Quanto a isso, como mulheres moabitas, sua perspectiva de se casar com um homem em Judá e constituir família era deveras mínima. — Rute 1:11-13.
“Não, minhas filhas”, prosseguiu Noemi, “pois é muito amargo para mim, por vossa causa, que a mão de Yahweh tenha saído contra mim”. (Rute 1:13) Noemi não acusava Deus dum malefício; tudo o que ele permite deve estar certo. (Pro. 19:3) Mas ela se sentiu pesarosa por causa de suas noras. E, para estas, era tempo de tomar uma decisão. Acompanhariam altruisticamente Noemi? Sua motivação e lealdade estavam sendo postas à prova.
Orpa tomou uma decisão. Com lágrimas nos olhos, beijou sua sogra e partiu. “Eis”, disse Noemi a Rute. “Tua cunhada enviuvada voltou ao seu povo e aos seus deuses. Volta com a tua cunhada enviuvada.” (Rute 1:14, 15) Sim, Orpa estava voltando ao seu povo e aos “seus deuses”. Tanto ela como Rute haviam sido criadas entre o “povo de Quemós”, e talvez até mesmo tivessem presenciado o horrível sacrifício de crianças, em adoração deste falso deus moabita. Orpa estava voltando para tudo isso! — Núm. 21:29; 2 Reis 3:26, 27.
Mas, não era assim com Rute. “Não instes comigo para te abandonar, para recuar de te acompanhar”, disse ela, “pois, aonde quer que fores, irei eu, e aonde quer que pernoitares, pernoitarei eu. Teu povo será o meu povo, e teu Deus, o meu Deus. Onde quer que morreres, morrerei eu e ali serei enterrada”. A isto, a moabita acrescentou um juramento perante Deus, dizendo: “Assim me faça Yahweh e assim lhe acrescente mais, se outra coisa senão a morte fizer separação entre mim e ti.” Que expressão comovente de amor leal! De fato, é muito mais do que isso. Rute escolheu uma vida de serviço a Deus, e o povo de Noemi — os que estavam em pacto com o verdadeiro Deus — seria o seu povo. A moabita estava decidida a servir fielmente a Deus. Portanto, Noemi parou de fazer empenho de mandar a jovem embora. — Rute 1:16-18.
Ao passo que a judia idosa e a moabita jovem seguiam seu caminho penoso, nós podemos pensar nas cenas tocantes que se desenrolaram pouco antes. Orpa cedera aos seus próprios interesses. O progresso que talvez tivesse feito em aprender algo sobre Deus não significara o bastante para ela, para impedi-la de voltar ao seu povo e aos “seus deuses”. Se Rute tivesse tido egoistamente saudades de sua terra nativa, também poderia ter voltado a ela. (Veja Hebreus 11:15.) Mas, esta jovem moabita havia demonstrado amor leal, não só para com a idosa Noemi, mas especialmente para com Deus. Mostrou um espírito abnegado e a determinação de servir o verdadeiro Deus em fé. Observando estas decisões contrastantes, também somos animados a não ‘retroceder para a destruição’, mas a ter “fé para preservar viva a alma”. — Heb. 10:38, 39.

AGITAÇÃO EM BELÉM!
Por fim, as duas mulheres chegam ao seu destino, Belém. Sua presença agita toda a cidade. “É esta Noemi?” perguntavam as mulheres. Os anos haviam cobrado seu tributo. As mulheres, certamente, notaram que esta mulher, antigamente alegre, fora afetada pela tristeza e pela aflição. Ora, sua própria reação indica dor de coração!
“Não me chameis Noemi [minha agradabilidade]”, disse ela. “Chamai-me Mara [amarga], pois o Todo-poderoso o fez muito amargo para mim. Eu estava cheia [tendo marido e dois filhos] quando fui, e é de mãos vazias que Yahweh me fez voltar. Por que me devíeis chamar Noemi, quando foi Yahweh quem me humilhou e o Todo-poderoso quem me causou a calamidade?” (Rute 1:19-21) Ora, Noemi estava disposta a aceitar o que Deus permitia, mas, evidentemente, achava que Deus era contra ela. (Rute 1:13; veja 1 Samuel 3:18.) Sem dúvida, nos dias em que um ventre frutífero era considerado uma bênção divina e a esterilidade uma maldição, era humilhação para a mulher não ter filhos vivos. E que esperança tinha então Noemi de poder contribuir para a linhagem do Messias?

UMA HUMILDE RESPIGADORA OBTÉM FAVOR
Noemi e Rute chegaram a Belém “no início da sega da cevada”, no princípio da primavera. (Rute 1:22) Sendo diligente e estando disposta a servir, Rute, com a permissão de Noemi, foi começar a respigar nos campos de cereais, atrás dos ceifeiros. Ela sabia que a respiga era a provisão amorosa de Deus para os pobres e os aflitos, para o residente forasteiro, o menino órfão de pai e a viúva. Em Israel, estes tinham permissão de ajuntar ou respigar qualquer parte da safra que os ceifeiros inadvertida ou intencionalmente tinham deixado. (Lev. 19:9, 10; Deu. 24:19-21) Embora Rute tivesse o direito de respigar, ela solicitou humildemente fazer isso em certo campo, e recebeu permissão. Evidentemente, porém, a mão de Deus interveio no assunto como que “por acaso”, fazendo com que ela fosse “parar no pedaço de campo que pertencia a Boaz”. — Rute 2:3.
Então, aproximou-se Boaz. Ele era “homem poderoso em riqueza”, sendo filho de Salmon e Raabe. Sim, Boaz era judeu. Ele não só era amo que tinha consideração, muito estimado pelos trabalhadores, mas era também devoto adorador do verdadeiro Deus, porque cumprimentava os ceifeiros com as palavras: “Yahweh seja convosco”, e eles respondiam: “Yahweh te abençoe.” — Rute 2:1-4.
Boaz soube do jovem encarregado dos ceifeiros que Rute era a moabita que pouco tempo antes viera com Noemi a Belém. Ela, após receber permissão, havia respigado constantemente durante a manhã fresca, até o sol ter chegado ao alto, sem se queixar, suportando o calor. Só então se havia sentado um pouco na casa, que evidentemente era apenas uma barraca para os ceifeiros. Rute, certamente, não era mulher mimada! — Rute 2:5-7.
Mais tarde, Boaz instou com Rute para que não respigasse em outro campo, mas que ficasse perto das jovens dele, as quais provavelmente seguiam os ceifeiros e amarravam os feixes. Boaz ordenou aos moços que não tocassem nela, e ela teve liberdade para beber dos jarros de água que encheram. Profundamente grata, Rute prostrou-se em humildade no chão, perguntando: “Como é que tenho achado favor aos teus olhos de modo a ser notada, sendo eu estrangeira?” Ora, Boaz não estava querendo granjear-lhe o afeto, para satisfazer os caprichos dum homem idoso. Antes, ele soube que a moabita havia abandonado pai, mãe e pátria, apegando-se à sua sogra idosa. Obviamente impressionado com o amor leal e a humildade de Rute, ele se sentiu induzido a dizer: “Yahweh recompense teu modo de agir e haja para ti um salário perfeito da parte de Yahweh, o Deus de Israel, debaixo de cujas asas [protetoras] vieste refugiar-te.” Por certo, conforme Rute reconheceu, Boaz a havia consolado e falado tranqüilizadoramente com ela. — Rute 2:8-13; Sal. 91:2, 4.
Na hora de os ceifeiros comerem, Boaz disse a Rute: “Aproxima-te, e tens de comer do pão e mergulhar teu pedaço no vinagre [“vinho acre”].” Que condimento refrescante durante o calor do dia! Boaz ofereceu a Rute grãos torrados, e ela os comeu com satisfação, deixando até mesmo sobrar alguns. — Rute 2:14; veja Nova Bíblia Inglesa.
Daí, voltou ao trabalho. Num espírito de generosidade, Boaz mandou que seus moços deixassem que Rute respigasse “também entre os molhos de espigas cortadas”. Até mesmo mandou que ‘arrancassem das gavelas algumas’, deixando-as para que ela os respigasse. Chegando a noitinha, Rute ainda estava atarefada, “malhando” ou debulhando o que havia respigado. Usando-se um pau ou mangual para bater manualmente os grãos no chão, separa-se a cevada das hastes e da palha. Ora, a respiga de Rute, no decorrer do dia, produziu uns 22 litros de cevada! Ela a carregou de volta para casa, a Belém. Altruistamente, Rute tirou também o alimento que lhe sobrara na refeição daquele dia, entregando-o à sua sogra necessitada. — Rute 2:14-18.

Rute, de novo, demonstrou amor leal para com Noemi. Acrescente-se a isso o amor desta jovem mulher por Deus, sua diligência e humildade, e não é de se admirar que as pessoas a considerassem “uma mulher de bem”. (Rute 3:11) Rute, certamente, não comia “pão da preguiça”, e, por causa de seu trabalho árduo, ela tinha algo a compartilhar com alguém em necessidade. (Pro. 31:27, 31; Efé. 4:28) E ao assumir responsabilidade para com sua idosa e enviuvada sogra, a moabita também deve ter chegado a conhecer a felicidade que vem de dar. (Atos 20:35; 1 Tim. 5:3-8) Rute, de fato, é belo exemplo para qualquer mulher piedosa.