Comentário de Romanos 1:1-32 (J. W. Scott)

Romanos 1

A saudação abreviadamente é “Paulo a todos os chamados em Roma”. A forma é semelhante à adotada em todas as suas cartas, porquanto era este o estilo epistolar ordinariamente usado no primeiro século. Temos no grego muitos exemplos disso, todos seguindo o mesmo modelo, primeiro o nome do escritor, depois o do leitor acompanhado da saudação. Esta fórmula varia na literatura paulina de acordo com as circunstâncias. Aqui, visto dirigir-se a uma igreja que ele não fundou nem até ali visitou, apresenta suas credenciais. É servo de Jesus Cristo (1; lit. “escravo”), pessoa cuja vida é de invariável lealdade e inquestionável obediência, escravo, propriedade de Jesus Cristo. O apóstolo pertencia à classe cujas orelhas foram furadas e cuja liberdade estava em ser cativo. Entre as várias palavras gregas do Novo Testamento, que se traduzem por “servo”, este vocábulo doulos é o mais forte e o mais frequente. É interessante lembrar que a categoria do escravo dependia do seu senhor. Chamado para ser apóstolo (1); lit. “enviado”, “mensageiro”, assim traduzido em 2Co 8.23; Fp 2.25. É escolha divina, chamamento imperioso para uma função, a que não se pode desobedecer. Na biografia bíblica, este chamado segue normalmente ao apelo para arrependimento e à entrega pessoal pela fé, bem como à convocação para seguir o Senhor no modo de vida. A chamada especial aqui é para o apostolado. Paulo invariavelmente afirmava que fora chamado diretamente para este elevado ofício (cfr. “não da parte de homens, nem por intermédio de homem algum”, Gl 1.1). Essa dignidade normalmente provinha por mediação da Igreja viva. O título pertenceu primeiramente aos Doze, cuja honra procedia de haverem estado com Jesus nos dias de Sua carne. Mais tarde foi dado a outros líderes e pregadores da igreja (cfr. At 14.14). Separado para o evangelho de Deus (1). É assim que Paulo se apresenta. É consagrado ou “posto de parte” para o serviço do evangelho. Dedicação é a resposta do homem ao ato da escolha divina, e estas ideias devem ser postas em relevo. A separação é toda de Deus, que consagra Seus servos, os quais, por seu turno, se dedicam a Ele. Temos agora um exemplo do hábito que Paulo tinha de “afastar-se por uma tangente”. Na maioria de suas saudações e noutras partes ele expande o pensamento, umas ideias seguindo outras em rápida sucessão. Aqui a palavra “apóstolo” conduz ao “evangelho” que, por sua vez, leva o escritor a uma passagem de grande valor cristológico. O estilo é lacônico e de longo alcance. Passa a definir o evangelho de Deus como divino (1), predito (2) e cristocêntrico (3-5). O evangelho não é invenção de homens; procede do céu. Vemos isto na ênfase da preposição - de Deus (1); Paulo tem aqui em mente a origem do evangelho. Antes de descrever sobre que versa esse evangelho, o apóstolo afirma a harmonia que há entre sua mensagem e a revelação dada antes ao povo judeu. Está de acordo com todas as promessas dos antigos profetas; firma-se nas Sagradas Escrituras (2); isto é, no Velho Testamento. O principal traço característico do evangelho é apresentar-nos Jesus Cristo como sendo tudo em todas as coisas. Em consequência, Paulo se deixa cativar pela apreensão (conhecimento) que tem do Senhor, que Se antecipou em tomar conta dele (apreendê-lo) no poder de Sua ressurreição. Nesta passagem cristológica (vers. 3-5), ele dá ênfase primeiro à encarnação, visto como este é que deve ser o ponto de partida da mensagem evangélica. Mas a vinda de Cristo segundo a carne (3) foi cumprimento de profecia messiânica; desta forma, fica justificada a declaração feita no vers. 2. Depois, segundo o espírito de santidade (4), isto é, quanto à Sua perfeição moral, Ele se manifestou como sendo Filho de Deus desde toda a eternidade mediante o milagre da ressurreição. A palavra declarado (4) da versão de Almeida tem atrás de si o grego “determinado” ou “designado”, a sugerir que a obra da redenção do mundo fora predestinada na eternidade, antes da encarnação de Cristo.

Este evangelho sublime, divino, profetizado e cristocêntrico torna-se, como tal, a regra dos cristãos. Quem escreve a carta e os que a leem são um em Jesus Cristo, nosso Senhor (4). Note-se o uso que Paulo faz dos nomes oficiais e universais do Filho de Deus, que é Salvador, Messias e Rei. Mediante Ele, os romanos recebem graça, e, por acréscimo, Paulo recebe o apostolado (5). Graça, favor divino por pecadores indignos, é a nova relação em que os crentes estão para com Deus. O fim para o qual ele recebeu o apostolado é a obediência à fé (5), ou submissão confiante de todos os gentios ao Salvador do mundo. Paulo é o apóstolo da gentilidade, e daí o seu interesse pelos romanos, como participantes potenciais e atuais da graça divina. Donde conclui o direito que tem de se dirigir a eles. A todos os amados de Deus, que estais em Roma, chamados para serdes santos (7). Há evidentemente uma comunidade cristã na metrópole, preciosa ao coração de Deus e cujo destino é novidade de vida para a perfeição moral. A dedicatória, propriamente, conclui com uma bênção, em que se combinam graça e paz, uma ideia grega e outra hebraica.

O apóstolo exprime sua satisfação a respeito de cada um dos cristãos romanos, porque a fé que eles possuem não está escondida num canto obscuro, mas é do domínio público. Arautos da fé, têm eles sido a tal ponto que Deus, a quem Paulo adora em espírito pela pregação de Seu Filho, é testemunha da menção contínua que deles faz em suas orações. A ideia central de suas petições é que Deus apresse o dia em que possa encontrá-los, se é da vontade divina, havendo uma razão dupla para esse pedido. É que deseja firmá-los, repartindo com aqueles irmãos um dom espiritual, e também receber o conforto da fé mútua, deles e sua.

Os cristãos de Roma deviam saber que, embora impedido de realizar esse desejo, Paulo muitas vezes houvera proposto visitá-los, para ver o mesmo trabalho espiritual, feito entre eles como já fora feito alhures, entre outros gentios. Sente-se devedor tanto a civilizados como a incivilizados, a sábios como a ignorantes. A comissão que recebera foi para pregar o evangelho a toda gente e, quanto ao seu ardor pessoal, sente que tem para com os romanos uma dívida de evangelização, porquanto se ufana (note-se a meiose, não me envergonho) de pregar o evangelho, o qual é capaz de salvar a todos quantos creem, judeus ou gregos, embora aqueles antes que os outros tenham direito e interesse nisso (16). No evangelho a justificação divina (ver a nota introdutória à II seção) revela-se de fé em fé-os crentes levam outros a crer! Isto havia sido revelado igualmente aos profetas (cfr. vers. 2) como se vê pelas palavras de Habacuque, O justo (isto é o justificado) viverá por fé (17; cfr. Hc 2.4).

O apóstolo agora passa para a seção doutrinária de sua carta, encetando uma discussão dos princípios do seu evangelho. O assunto do tratado foi declarado no vers. 17, como a justiça de Deus revelada de fé em fé. Este grandioso tema é o próprio cerne da epístola, como o era do evangelho pregado por Paulo. Expresso singelamente, vem a ser “justificação somente pela fé”. O problema pessoal do apóstolo, não primeiramente de seu espírito, mas de sua vida prática, era – “Como posso ajustar relações com Deus?” Antes da experiência empolgante da estrada de Damasco, Paulo ensaiou resolver o problema à maneira judaica, praticando o bem, isto é, estabelecendo relações justas com Deus por cumprir a lei divina. O método não dera certo. Nenhum mortal já houve sem pecado, muito menos positivamente santo, que guardasse todos os mandamentos de Deus. Toda a teologia de Paulo era experimental; descobriu ele que por meio da fé na obra consumada de Cristo ajustava suas relações com Deus. Não que o fizesse por si, mas era isso obra da “justiça de Deus”. É este o sentido da justificação. Os termos que emprega para significar “justo”, “justificação” e “justiça” (dikaios, dikaiosis e dikaiosyne) todos procedem da mesma raiz. Justificação pela fé, por conseguinte, significa justiça pelo ato de crer, a passagem para uma relação adequada com Deus mediante a fé no evangelho revelado de Jesus Cristo. Devido a esta bendita razão de sua própria experiência é que ele não se envergonhava do evangelho de Deus. Alguns judeus em Roma podiam escandalizar-se com tal evangelho, e gentios podiam considerá-lo estultícia (1Co 1.23); mas, para o apóstolo, este mesmo evangelho é verdadeira dinamite (poder), uma força espiritual, atividade manifesta de Deus na sua vida, trazendo salvação no seu sentido mais vasto ao espírito, à alma e ao corpo, tanto aqui como no futuro. Esta atividade divina dentro da experiência humana, esta passagem para uma relação justa com Deus, e a manutenção dela, é a essência de toda a mensagem do apóstolo. À medida que se for desenvolvendo o tema da justiça de Deus no decorrer da carta, virão à tona as doutrinas da justificação, santificação e predestinação, expostas e defendidas por ele.

A “justiça” da raça humana é, de fato, injustiça. O ideal moral absoluto é a justiça de Deus, que só pode vir dEle e ser revelado, ou feito conhecido somente por meio do evangelho de Jesus Cristo. Nessa conformidade, Paulo traça um retrato vívido da injustiça do mundo gentílico, descrevendo a religião pagã (impiedade) e a moralidade pagã (injustiça). Sobre uma e outra a ira de Deus se revela (18), de igual modo como se revela Sua justiça (ver vers. 17). A ideia de juízo é frequente no Velho Testamento como parte integrante da justiça de Deus tratando retamente com o Seu povo e com o mundo gentílico. Os judeus que liam Paulo, pelo menos, estavam bem certos das implicações da frase “a ira de Deus”.

O mundo pagão, do tempo de Paulo, adorava ídolos feitos à semelhança de homens (Atenas) e de animais (Egito). Tal politeísmo era a consequência religiosa do racionalismo. Os gentios tornaram-se nulos em seus próprios raciocínios (21); isto é, fúteis em suas filosofias. A palavra grega dialogismos é comumente traduzida “imaginação” ou “raciocínio”, e, uma vez, “discussão”, nesta epístola (Rm 14.1). Cfr. Mt 15.19; Mc 7.21; Lc 2.35; Lc 5.22- 6.8; Lc 9.46-47; Lc 24.38; 1Co 3.20; Fp 2.14; 1Tm 2.8; Tg 2.4. “Raciocínios” é o que mais se aproxima da ideia da raiz verbal, que significa “fazer considerações, ou cálculos”, ou simplesmente “raciocinar”. Essa jatanciosa teorização levava à idolatria, visto como, obscurecendo ou detendo a verdade (18), fazia-os afastar-se de Deus e a excogitar ignóbeis substitutos dEle (23). Eles deviam compreender melhor! Deviam conhecer o que era cognoscível; Deus Se lhes revelara. Sua mão oculta, desde o princípio, podia ser bem discernida. Deus sempre deu testemunho de Si, tanto pela natureza como pela consciência. Não havia desculpas para a ignorância deles. Embora seja paradoxal falar em ver o invisível, as coisas invisíveis de Deus, o seu próprio poder e divindade, “Deus em ação e na Sua essência”, nunca estiveram escondidas do homem (20). E assim Paulo condena as filosofias gentílicas por alienarem de Deus os homens, Deus que é a verdade, e por conduzirem ao culto vão dos ídolos. Veja-se no vers. 25 a expressão “mudaram a verdade de Deus em mentira” e compare 2Ts 2.11 n.

Uma religião impura resulta numa vida também impura. Esse quadro horrível do paganismo é corroborado por escritores do tempo de Paulo. Foi uma época de vícios desavergonhados e pecados anti-sociais; um tempo de indizível decadência moral. O juízo inevitável de Deus caiu sobre os que preferiam a razão humana à divina revelação. Três vezes o apóstolo assevera que Deus os abandonou: Deus os entregou (24, 26, 28). Tem-se observado que esse abandono é decididamente punitivo não meramente permissivo no sentido de Deus permitir que os pagãos idólatras O desprezassem; nem privativo, no sentido de privá-los de Sua graça. É castigo positivo pela ignorância culposa e pecaminosidade voluntária. O juízo divino foi uma consequência inevitável, uma colheita da sementeira feita (27). O mundo pagão entregou-se à lascívia, no uso desnaturado dos corpos em perversões sexuais (26-27), e, finalmente, a uma disposição mental reprovável (28). Observe-se aqui o jogo de palavras. Visto como os pagãos não gostaram (edokimasan) de conservar Deus no seu conhecimento, Deus os entregou a uma disposição mental reprovável (adokimon noun); isto é, exatamente como esses estultos e sórdidos pagãos reprovaram Deus assim o Senhor os abandonou a uma consciência reprovável. O vocábulo grego adokimos originalmente alude à aferição de metais; os que não resistiam ao teste eram “reprovados”. O adjetivo é traduzido por três palavras portuguesas: “rejeitado” (Hb 6.8), “desqualificado” (1Co 9.27) e “reprovado” (Rm 1.28; 2Co 13.5-7; 2Tm 3.8; Tt 1.16). O vers. 32 indica que os pecados aí condenados não resultam de ceder a tentações súbitas, mas são alimentados deliberadamente e estimulados nos outros.

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