Livro de Eclesiastes — Interpretação

Livro de Eclesiastes — Interpretação

Livro de Eclesiastes — Interpretação

O problema crucial apresentado pelo livro de Eclesiastes quando se trata de sua interpretação é o de sua posição dentro do cânon das Escrituras. Entre os judeus houve quem disputasse seu direito de ser incluído entre os livros sagrados, desde o começo, e sua presença entre eles tem sido uma fonte de perplexidade para muitos crentes cristãos desde então. Aqueles que pensam que a tonalidade que prevalece no livro é de desilusão e desespero, temperado apenas por um epicurismo modificado, realmente devem achar difícil como tal livro possa ter sido aceito entre aqueles que nos podem tornar sábios para a salvação mediante a que é em Jesus Cristo.

Alguns estudos recentes sobre o livro, todavia, têm demonstrado que essa concepção popular sobre o livro é superficial, e têm levado a uma apreciação mais verdadeira sobre o ponto de vista peculiar do escritor. Isso é provavelmente indicado pelo seu nome escolhido, Qoheleth, “o Pregador” (Eclesiastes é o equivalente grego desse nome). No hebraico a palavra está ligada com qahal, a assembléia pública, e sugere a espécie de sabedoria transmitida pelo orador aos que se reuniam no átrio exterior, em distinção com a "sabedoria oculta" que é conhecida somente daqueles que foram admitidos ao mistério de Deus (1Co 2.7). Qoheleth escreve partindo de premissas ocultas, e seu livro, em realidade, é a maior obra sobre apologética ou teologia "polêmica". Sua aparente prolixidade é ditada por seu alvo: Qoheleth estava dirigindo-se ao público em geral, cuja visão está limitada pelos horizontes deste mundo; ele os enfrenta no próprio terreno deles, e prossegue a fim de convencê-los da inerente inutilidade desta existência. E isso ainda é mais sustentado por sua expressão característica, "debaixo do sol", pela qual ele descreve aquilo que o Novo Testamento chama de “o mundo” (kosmos). Seu livro, de fato, é uma crítica contra o secularismo e a religião secularizada. Pois o secularismo não é necessariamente irreligioso, e a religião dos judeus tendia a ser desproporcionadamente secular, esquecendo a transcendência de Deus (vers. 2). Nessa qualidade, sua mensagem é permanente, e não menos para nossa própria época, quando o secularismo domina as mentes dos homens como talvez nunca antes na história, e quando a religião muito tem feito para amoldar-se a isso e procura recomendar-se como meio de melhoramento da vida “debaixo do sol”. O livro de Eclesiastes exerce uma indispensável função dentro do cânon das Escrituras, provendo um corretivo contra todas as tentativas de reduzir a religião a um mero instrumento do secularismo.

Aprofunde-se mais!

A fraqueza fatal da utopia secularista é, conforme tem sido dito, que não toma na devida consideração os fatos gêmeos do mal e da morte. Os olhos de Eclesiastes estão bem abertos para a vaidade e corrupção às quais a criação foi sujeitada (Rm 8.20 e segs.), e o livro inteiro tem sido apropriadamente descrito como uma exposição da maldição imposta devido à queda (Gn 3.17-19). O escritor percebe como esses dois fatos delimitam a existência inteira debaixo do sol, com um sinal negativo, e desafiam todas as tentativas para que se force tal existência a produzir sentido ou satisfação por si mesma.

Mas, embora a tonalidade do livro seja preponderantemente negativa, é um equívoco apodar o livro de Eclesiastes como cético ou apóstolo do desespero. O melancólico estribilho “Vaidade de vaidades! é tudo vaidade”, não é o veredito do escritor sobre a vida em geral mas apenas quanto aos empreendimentos humanos mal orientados de tratar o mundo criado como se fosse um fim em si mesmo. O pregador sabe, durante todo o tempo, que o mundo tem uma significação positiva; de fato, como ele poderia proferir tão destruidor criticismo se não soubesse disso? Mas, esse segredo ele conserva em segundo plano, excetuando uma indicação aqui e outra acolá, porque sua preocupação imediata é dissipar todas as esperanças falsas e ilusórias que possuem as mentes dos homens, e das quais é preciso purgá-las antes que tais homens possam ser levados à esperança que é firme e permanente, e que entra até o interior do véu (Hb 6.19). "A fim de que os homens possam ser capazes de encontrar a verdadeira felicidade, ele destrói, com golpes sem misericórdia, a falsa felicidade que continuamente buscam neste mundo mas que Llhes produz tão somente infelicidade" (G. Kuhn, Erklarung des Buches Koheleth, 1926). Contudo, o pregador sabe que o mundo pode proporcionar felicidade e gozo, conforme testificam suas freqüentes exortações para que se busque essas coisas (Ec 2.24; Ec 3.12,22; Ec 5.18; Ec 9.7; Ec 11.9), e que podemos encontrar no mundo uma ocupação na vida que seja digna (Ec 3.12 e segs.; Ec 9.10); doutro modo, os conselhos que oferece para a vida e a conduta neste mundo não teriam significado.

A significação do mundo é que ele pode tornar-se um meio de revelação sobre a bondade, a sabedoria e a justiça de Deus. É somente quando o homem o trata como se fosse uma finalidade em si mesma, e quando seu principal alvo é ganhar o mundo, que este se transforma em vaidade. Porém, existe um caminho no qual o homem pode aceitar a vida debaixo do sol, com seus dons e perdas, com suas aparentes irracionalidades e injustiças, isto é, “da mão de Deus” (Ec 2.24; Ec 5.18-20). É claro que isso não importa em ceticismo ou pessimismo; mas é fé. Conforme foi expresso por um moderno escritor, em quem algo do espírito de Eclesiastes vive novamente, a fé sempre protestou que “todas as coisas seriam absurdas se suas significações fossem exauridas em sua função e lugar no mundo dos fenômenos físicos, se por sua essência não se estendessem a um mundo além do presente”; e sempre “confiou na visão interna, que discerne as coisas por trás da natureza algo mais divino que a natureza, in recessu divinius aliquid” (W. Macneile Dixon, The Human situation, págs. 40 e segs.). Eclesiastes é cético somente até o ponto em que rejeita as pretensões da sabedoria humana para elucidar a obra de Deus (Ec 3.11; Ec 8.17). O pregador sabia que andamos pela fé, e não pela vista; e exibiu a necessária humildade ou reserva de fé em face da transcendental sabedoria de Deus, de cuja eterna providência ele estava firmemente certo (Ec 3.14).

A complexidade característica de seu pensamento, com suas aparentes contradições ou seus “contrapontos” (W. Vischer, Der Prediger Salomo, 1926) mostra-se claramente em suas afirmações sobre a morte. Por um lado ele fala da morte como a redução final da vida debaixo do sol à nulidade (Ec 3.19 e segs.; Ec 9.4-6; Ec 11.8). Mas, dizer que ele considera a morte como a extinção final é não fazer justiça a outra de suas linhas principais de pensamento. Ele repetidamente afirma a certeza do julgamento divino (Ec 3.17; Ec 11.9; Ec 12.14), e permanece certo, a despeito de todas as injustiças da vida debaixo do sol, que “bem sucede aos que temem a Deus” (Ec 8.12). Sua posição se parece com a de Sl 49. À semelhança do salmista ele se opõe a qualquer imortalidade falsa erigida sobre premissas derivadas da vida debaixo do sol. O veredito do salmista “o homem que está em honra não permanece; antes é como os animais que perecem” (Sl 49.12) é refletido em Ec 3.18: “Disse eu no meu coração: é por causa dos filhos dos homens, para que Deus possa prová-los, e eles possam ver que são em si mesmos como os animais”. Em contraposição a isso, entretanto, o salmista estabelece o “grande ‘mas Deus’” (Sl 49.15; cfr. Ef 2.4), e à vista disso modifica sua primeira conclusão: “O homem que está em honra, e não tem entendimento, é semelhante aos animais que perecem” (Sl 49.20). A significativa frase, no livro de Eclesiastes, “são em si mesmos como animais”, certamente indica que o pregador tinha experiência desse conhecimento, que é a única coisa que outorga ao homem tal proeminência sobre os irracionais (Ec 3.19). Seja como for, sua resoluta negação de todas as possibilidades humanas, pelo menos esclarece o caminho para novas possibilidades de Deus, e nos capacita a falar de Eclesiastes como um livro que fica no limiar da ressurreição.


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