Evangelho de João — Contexto Judaico

Contexto Judaico do Evangelho de João

Contexto Judaico do Evangelho de João

Que o autor escreveu a partir de uma herança judaica não mais está em debate. É quanto até que ponto essa herança influenciou o escritor que é discutível. Embora João faça quantitativamente menos uso do Velho Testamento do que o fazem os Sinópticos, ele coloca suas citações em lugares muito estratégicos em seu argumento. Há somente quatorze referências ao Velho Testamento em João: 1:23; 2:17; 6:31; 6:45; 7:38; 7:42; 10:34; 12:13; 12:38; 13:18; 15:25; 19:24; 19:28; 19:36. Às vezes ele citou da Septuaginta e outras vezes parece que ele fez uma tradução do texto hebraico. Ao lado destas citações, há temas veterotestamentários encontrados neste Evangelho. O Bom Pastor (cap. 10) e A Videira Verdadeira (cap. 15) são bons exemplos. Outras idéias pressupõem um conhecimento do Velho Testamento: a Festa dos Peregrinos, as palavras, acompanhadas de “Eu sou”, títulos messiânicos e imagens básicas para Israel. Separados do Velho Testamento, estes conceitos são ininteligíveis. Dentro do próprio judaísmo havia várias divisões. Nenhuma divisão pode ser dita como sendo representativa de todos os judeus do primeiro século. Os estudiosos falam de judaísmo rabínico, sectário e helenístico. Alguns fariam ainda mais divisões, mas estes títulos são inclusivos. O judaísmo rabínico centralizava-se em torno da sinagoga. Os fariseus nutriam o estudo escrito do Velho Testamento e a tradição oral que o cercava. Com a destruição de Jerusalém e do templo em 70 d.C, os rabis se tornaram líderes religiosos incontestáveis do judaísmo. Mas durante a época de Jesus Cristo e da formação da tradição do evangelho, esses ensinos rabínicos ainda não haviam sido reduzidos à escrita, e nosso material escrito para comparação dos conceitos rabínicos e joaninos não são da mesma era. Contudo, muito dos ensinos orais encontrados no Talmude é da época de Jesus e da igreja primitiva, e podem ser observados paralelos. 

É interessante observar que, em João, Jesus devotou quase que seu ministério inteiro em Jerusalém, onde o centro religioso estava localizado. A maioria das controvérsias de Jesus eram com os membros do Sinédrio, tais como Nicodemos ou aqueles que apoiavam essa instituição (3:1; 7:45-52; 9:28,29; 11:45-53). Muitos dos discursos giravam em torno dos argumentos e da tradição rabínicos (5:10-18; 5:37-47; 7:15-24; 8:13-19; 10:31-38). Do começo ao fim, vê-se que o quarto Evangelho reflete o interesse rabínico (7:25-31; 7:40-44; 12:34). O uso, por Jesus, do termo “Eu sou” era especialmente de interesse rabínico, uma vez que ele se relaciona com a auto-identificação de Jesus como o Jeová do Velho Testamento (4:26; 6:20,35,41,48,51; 8:12, 24,28,58; 10:7,9,11,14; 11:25; 14:6; 15:1).

Embora possa haver pontos de contato entre o quarto Evangelho e o judaísmo rabínico, essa relação não pode explicar alguns dos conceitos não encontrados no rabinismo, mas presentes neste Evangelho. É sugerido que João foi também um produto do judaísmo sectário que existiu antes do triunfo final do rabinismo. João mostra que ele sabia das esperanças apocalípticas dos judeus antes de estas esperanças terem sido destruídas na Guerra Judaico-Romana. Contudo, usou os termos da imagem apocalíptica (Filho do Homem — 1:51; 3:13,14; Reino — 3:3,5; 18:36; Juízo — 5:27-29; tribulação — 16:33; ressurreição — 11:23-26), para mostrar que o Jesus histórico é o revelador da glória de Deus no mundo além. Devido à natureza essencial de Jesus, o futuro já não tem mais a mesma conotação para o cristão como tem para o apocalipsista. Agora é possível se “ver” Deus, olhando-se de volta à pessoa de Jesus. O que o futuro fará será apenas aclarar a obra do Espírito Santo e revelar o triunfo final do Senhor ressurreto. O crente não tem nenhuma necessidade de informação esotérica para resolver o mistério do futuro. As realidades do futuro foram reveladas em Jesus, o Cristo.

Desde a descoberta dos Rolos, em Qumran, na área do Mar Morto, nosso conhecimento acerca do judaísmo sectário foi grandemente ampliado. A literatura sobrevivente da comunidade monástica dos essênios revela alguns paralelos com o pensamento joanino. Antes das descobertas, era geralmente aceito que muita parte de João era um reflexo do cristianismo tardio, o do fim do primeiro ou do segundo século. Mas, sabendo-se que toda a literatura de Qumran data de antes da Guerra Judaico-Romana de 66-70 d.C, agora se concede que muitos dos conceitos básicos de João eram conhecidos e Comumente aceitos pelos judeus palestinos durante o ministério ativo de Jesus. Existem alguns paralelos dignos de nota na linguagem, sugerindo que talvez o autor do quarto Evangelho estivesse familiarizado com o pensamento e a expressão de Qumran. W. S. LaSor (The Dead Sea Scrolls and the New Testament — Os Rolos do Mar Morto e o Novo Testamento, 1972) concluiu que, embora o Evangelho de João e os rolos sejam essencialmente diferentes historicamente (nenhuma única pessoa, data ou evento são comuns aos dois corpos de literatura), eles são basicamente semelhantes na perspectiva religiosa. Os dois movimentos surgiram no judaísmo sectário, mas seu desenvolvimento é independente um do outro. Sejam lá quais forem as semelhanças que existam entre os dois, elas podem ser explicadas pela origem de cada um dentro do ambiente judaico. Os movimentos cristão e essênio, ambos, surgiram das expectações apocalípticas do judaísmo sectário. Existem semelhanças, mas muito mais diferenças. A maior diferença é que o cristão vê o cumprimento da esperança escatológica no Jesus histórico, enquanto o essênio está ainda procurando pelo “Mestre da Justiça”. Idéias abstratas, tais como o dualismo, a luta ética e escatológica entre a luz e as trevas, a verdade e a imitação, a realidade e a penumbra, são, na realidade, elementos estranhos à mente hebraica. Estes elementos, presentes tanto na literatura de Qumran e em João, haviam há muito sido assimiladas dentro do judaísmo, antes do primeiro século. A importância das descobertas de Qumran está exatamente neste ponto. O pensamento do Evangelho de João não é, necessariamente, de uma época posterior ao da dos Sinópticos. Os judeus da Palestina, durante a época de Jesus, foram capazes de entender a mensagem de João. É agora reconhecido pela escola crítica que o pensamento helênico havia penetrado na cultura judaica da Palestina mais profundamente que anteriormente suposto.

O encontro demorado de Jesus com a mulher samaritana, em João 4:1-30, também demonstra o interesse de João no judaísmo sectário. Dos outros Evangelhos, somente em João e Lucas (9:52; 10:30-37; 17:11-19) é mostrado um interesse positivo nos samaritanos. Os samaritanos afirmavam preservar uma forma mais pura da fé de Israel, em contraposição ao judaísmo. Em comum com outros grupos sectários, os samaritanos sentiram que a adoração no Templo havia-se degenerado até o ponto em que não era mais aceitável. Este grupo, contudo, não foi aceito dentro da mais ampla definição dos judeus como herdeiros legítimos da casa de Israel.. Talvez Lucas e João, ambos, tivessem sentido alguma simpatia pelos samaritanos, quando viram também os cristãos sendo expulsos das sinagogas por causa de sua fé e sendo excluídos do judaísmo farisaico.

O judaísmo helenístico é o resultado da interação do judaísmo com as influências helenísticas. Foram feitas tentativas para se preservar a fé histórica de Israel e para se explicar essa fé a uma cultura estrangeira. Assim como os cristãos tiveram que interpretar uma religião basicamente helenística para um mundo não-judaico, da mesma forma o judaísmo teve que confrontar as religiões do mundo com sua mensagem de fé. Para fazer isto, a mensagem tinha que ser apresentada em termos que pudessem ser compreendidos por uma cultura estrangeira. Filo de Alexandria, um contemporâneo de Jesus, era nascido judeu e fora educado numa cidade sob influências helênicas tremendamente fortes. Ele estava tão imbuído na filosofia grega, que naturalmente interpretou o judaísmo em termos helênicos. Seu objetivo tornou-se demonstrar que tudo o que havia de melhor na literatura grega (especialmente as filosofias platônica e estóica) havia sido previsto no Velho Testamento (que ele considerava como sendo autoridade em questões de religião e fé). Filo representa aqueles judeus da era pré-cristã que estavam tentando achar pontos de contato entre a religião deles e a dos que os cercavam. Seus escritos tornam claro que muita coisa do que se conhece hoje acerca da filosofia grega fora levada para dentro da comunidade judaica da diáspora. Por causa deste fato, os estudiosos modernos estão achando difícil sustentar a teoria de que João dependeu de Filo. Geralmente, essa dependência direta é baseada no uso, por Filo, do termo lógos. Alguns insistiram que o uso deste termo, por João, no prólogo (João 1:1,14) é paralelo ao de Filo; o sentido do termo, portanto, se encontra nas categorias gregas de pensamento. Um exame cuidadoso de Filo e João revelaria que a definição de João de um redentor pessoal, um Lógos encarnado, jamais seria aceitável para Filo. O uso de João está mais em Unha com o hebraico dabar, a palavra ativa falada. O judaísmo helênico talvez tenha sido responsável por muitas formas de pensamento e vocabulário do quarto Evangelho. Mas esses elementos parecem ter estado em comum uso entre todos os judeus do primeiro século. Não há nenhuma evidência concreta de que João tivesse dependido dos conceitos helênicos de qualquer área geográfica particular. João foi, de fato, um produto da visão do mundo de seus dias no que concerne às formas de pensamento.