Evangelho de João — Autoria Joanina

Uma discussão detalhada da questão da autoria de João se faz necessária porque dela dependem decisões sobre o valor histórico do quarto evangelho.

No evangelho de João mesmo temos as seguintes informações: foi escrito pelo discípulo a quem Jesus amava (João 21.20-24). Esse discípulo estava do lado de Jesus na última ceia de Jesus com os seus discípulos (João 13.23). Ele é o discípulo que estava diante da cruz de Jesus e a quem Jesus confiou a sua mãe (Jo 19.26). Provavelmente também é ele a testemunha da morte de Jesus (Jo 19.35). Juntamente com Pedro ele corre para o túmulo na manhã do dia da páscoa e se convence de que o túmulo está vazio (Jo 20.2). Quando o ressuscitado preparou uma pesca maravilhosa para os discípulos — especialmente para Pedro — esse discípulo é o que primeiro reconhece a Jesus (Jo 21.7).

Destas indicações resulta que o autor é apresentado — presumivelmente pelos seus discípulos — como a testemunha ocular e amigo íntimo de Jesus. O nome não é mencionado. Este só pode ser dado por conclusões dos outros evangelhos e escritos do NT.

Em vários textos temos a menção de um grupo mais íntimo entre os discípulos de Jesus (Mc 5.37; 9.2; 14.33). São Pedro, Tiago e João. Segundo Lucas 22.8, Pedro e João prepararam a última ceia. Segundo Lucas 5.1-11, Tiago e João são sócios de Simão que são evidentemente diferenciados dos outros pescadores. Mesmo depois de Pentecostes, Pedro e João estão juntos (At 3.11; 4.13; 8.14). Paulo menciona Tiago, Cefas e João como colunas da igreja primitiva (Gl 2.9).

Disso concluímos: se estamos procurando nesse grupo íntimo dos discípulos aquele a quem Jesus amava, Tiago e Pedro estão excluídos. Tiago morreu como mártir já no ano de 44 d.C. Em João 21 Pedro está diante do discípulo amado. Dos três só sobrou João, filho de Zebedeu.

Essa conclusão tem apoio também na observação de que, neste evangelho, João, filho de Zebedeu, nunca é citado pelo seu nome, apesar da intimidade com Jesus. Será que o autor fez isso por elegância de estilo?

A favor de uma testemunha ocular como autor desse evangelho estão as seguintes observações: o autor conhece os costumes judaicos muito bem. Os rituais de purificação (Jo 2.6) e diversas festas judaicas, entre elas a festa dos tabernáculos (Jo 7.37). Ele é o único entre os autores de evangelhos a oferecer dados sobre a história judaica, ao mencionar nomes de sumo sacerdotes (Jo 11.49; 18.13ss). Ele lembra vários detalhes geográficos e topográficos. Exatidão nas citações exclusivas é marca sua em vários trechos: João 2.6; 4.5,6; 5.2; 6.9,19; 12.3; 13.24; 18.6,10; 19.39; 21.8,11. Daí vem a conclusão: ao olharmos atentamente para o evangelho vemos apoio para a informação de que uma testemunha ocular escreveu o quarto evangelho.

Essa posição é reforçada pela tradição da igreja antiga. Ao final do segundo século já estava definida a posição de que João, filho de Zebedeu, era o autor do quarto evangelho. Alguns exemplos disso são:

Irineu escreve no seu Adversus haereses em torno de 180 d.C.:

“Depois disso João, o discípulo do Senhor, que tinha reclinado ao lado dele, ele mesmo publicou o evangelho enquanto estava na Ásia.”(28)

Policrato, Bispo de Éfeso, em uma carta ao bispo Vítor de Roma, escrita em torno de 190 d.C., cita as testemunhas da tradição da Ásia Menor:

“… além disso também João, o que reclinou do lado de Jesus …, que foi enterrado em Éfeso.”(29)

No Cânon Muratóri lemos:

“O quarto evangelho, o de João, um dos discípulos. Quando os seus co-discípulos e bispos o desafiaram, ele disse: ‘Jejuem comigo por três dias a partir de hoje, e o que for revelado a cada um, queremos contar uns aos outros.’ Naquela noite veio a revelação a André, um dos discípulos, de que João, em seu nome deveria anotar tudo, depois que todos verificassem o que tinha escrito.”(30)

Todas essas declarações vêm do século II. Até lá a autoria de João filho de Zebedeu ainda não era reconhecida por todos, pois alguns grupos atribuíam o quarto evangelho ao gnóstico Cerinto. Em quem então Irineu baseia as suas informações?

Na sua carta ao gnóstico Florino, Irineu menciona Policarpo como informante:

“Os anciãos antes de nós, os que conviveram com os apóstolos, não lhe transmitiram esses ensinos. Eu vi a você quando ainda era criança, no sul da Ásia Menor na companhia de Policarpo … como Policarpo contava do relacionamento com João e com os outros, que tinham visto o Senhor, e de como ele se lembrava das palavras deles e daquilo que ele tinha ouvido deles a respeito do Senhor, dos seus milagres e do seu ensino.”(31)

Além disso ele se refere a presbíteros na Ásia:

“Todos os presbíteros, que tinham se encontrado com João, o discípulo do Senhor, … Alguns não viram somente a João, mas também outros apóstolos.”(32)

Se resumirmos tudo que foi dito até agora, podemos chegar à seguinte conclusão parcial: indicações do quarto evangelho e do restante do NT são direcionadas pela tradição da igreja antiga para a convicção de que João, filho de Zebedeu, é o autor desse evangelho.

Esse resultado, no entanto, é questionado pela crítica histórica. Os seguintes argumentos lhe servem de base:

Há indícios aparentes do fato de que Irineu não tinha conhecimentos exatos sobre o contexto histórico da época. Ele fala de João, o discípulo do Senhor, e quer com isso dizer o filho de Zebedeu, mas não o afirma explicitamente. Acrescente-se a isso que a lembrança de Policarpo vem da sua infância. Será que ele entendeu corretamente tudo que fora falado naquela época? De qualquer maneira, Policarpo sempre falava de João, que tinha visto o Senhor. Era esse o filho de Zebedeu? A pergunta é justificada porque Papias, no prólogo da sua “Interpretação das palavras do Senhor”, cita dois discípulos do Senhor com o nome João: o filho de Zebedeu e o presbítero.33 Teria acontecido uma troca aqui?

Há apoio a esse questionamento no próprio evangelho: a linguagem do livro mostra muitas semelhanças com o gnosticismo. Isso combina com uma testemunha ocular de Jesus oriundo da Palestina? Entretanto, essa linguagem é encontrada também na seita de Qumran. Como pode um do grupo dos doze depender do evangelho de Marcos em alguns trechos? Se o próprio Marcos depende da tradição apostólica, como F. Godet afirma,(34) essa pergunta é desnecessária. Como pode uma testemunha ocular do ministério de Jesus esquematizar de tal forma a polêmica entre Jesus e os judeus? Mas isso Paulo também faz (Rm 2.17; 3.1; 1Ts 2.14,15). Se isso acontece de fato, depende evidentemente do círculo de leitores. Todos os eventos dos quais, segundo os sinópticos, o filho de Zebedeu participou, faltam em João. Isso é estranho, mas compreensível, quando percebemos que esses evangelhos já existiam e eram pressupostos pelo autor do quarto evangelho.

A última objeção é feita com base na observação de Atos 4.13, que cita Pedro e João como homens “iletrados e incultos”. Como surgiu então essa obra tão teológica em todos os sentidos? Se, no entanto, refletirmos sobre o fato de que o parecer em Atos 4 foi dado aproximadamente no ano 30 d.C., e o evangelho foi escrito no fim do primeiro século, temos aí um intervalo de 60 anos de ensino apostólico. Isso não seria suficiente para dar bons frutos teológicos?

Apesar de todas as dúvidas lançadas sobre esses questionamentos críticos, W. G. Kümmel conclui:

“A autoria do evangelho de João pelo filho de Zebedeu está descartada.”(35)

R. Schnackenburg não consegue concordar com essa posição.(36) Por isso ele sugere outra tentativa de solução, que tenta respeitar os indícios do NT, a tradição da igreja antiga como também os questionamentos da crítica: O texto original do evangelho vem de João, o filho de Zebedeu, que relatou os acontecimentos da vida de Jesus e os interpretou pela perspectiva da ressurreição. Esse texto foi então desenvolvido para a forma em que hoje encontramos o evangelho por um aluno de João. Esse aluno teria então usado a expressão para o apóstolo “o discípulo a quem Jesus amava.” Depois da morte de João, é esse aluno quem garante a transmissão correta do texto — também em nome dos outros alunos (Jo 21.23). Essa forma de transmissão seria responsável também pelas rupturas no evangelho. A tentativa de Schnackenburg é a que mais me convence.

J. A. T. Robinson é ainda mais enfático na defesa de João, filho de Zebedeu como autor desse evangelho. Ele diz:

“Creio ser muito mais fácil crer que a função dos discípulos de João era basicamente de fazer aquilo para que temos dados concretos, ou seja, de servir de testemunha de que esse discípulo escreveu tudo isso e que o testemunho que foi dado na sua presença…, é verdadeiro.”(37)

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NOTAS
28. Irineu, Adversus Haereses III, 1.2 in Eusébio, História Eclesiástica, V, 8.4.
29. Eusébio, História Eclesiástica, III, 31.3.
30. Em alemão por E. Hennecke e W. Schneemelcher, Neutestamentliche Apokryphen, vol. I, 3, p. 19. Em português pelo tradutor.
31. Eusébio, História Eclesiástica, V, 20.4.
32. Irineu, Adversus Haereses, II, 33.3; in Eusébio, História Eclesiástica, III, 23.3.
33. Cf. W. G. Kümmel, Einleitung, p. 207.
34. Cf. p. 18ss.
35. W. G. Kümmel, Einleitung, p. 210.
36. R. Schnackenburg, Johannesevangelium, IV/1, p. 185-188.
37. J. A. T. Robinson, Wann entstand das NT? (Quando surgiu o NT?), p. 321.