O Reino de Deus no Judaísmo

O Reino de Deus no JudaísmoO Reino de Deus no Judaísmo
(Enciclopédia Bíblica Online)
Embora a expressão “O Reino de Deus” não ocorra no Antigo Testamento, a ideia pode ser encontrada em toda a extensão da atividade profética. Há uma dupla ênfase sobre a soberania real de Deus. Ele é freqüentemente referido como o Rei, tanto de Israel (Ex.15:18; Nm. 23:21; Dt. 33:5; Is. 43:15) como de toda a terra (2 Rs.19:15; Is. 6:5; Jr. 46:18; Sl. 29:10; 99:1-4). Muito embora Deus já seja mencionado como Rei, outras referências falam de um dia quando Ele se tornará Rei e governará sobre seu povo (Is. 24:23; 33:22; 52:7; Sf. 3:15; Zc.14:9 e seguintes).[14] Isso leva à conclusão de que, embora Deus seja Rei, Ele deve também tornar-se Rei, ou seja, deve manifestar sua soberania real no mundo dos homens e das nações.

A forma do Reino futuro é expressa de modo diferente por diferentes profetas. Muitos estudiosos encontram dois tipos distintos de esperança, respectivamente, no Antigo Testamento e no judaísmo. A verdadeira esperança profética hebraica aguarda o surgimento do Reino no cenário da história, Reino este que será governado por um descendente de Davi em um cenário político terreno (Is. 9,11). Quando essa expectativa esvaeceu-se, após o retorno do exílio, os judeus perderam sua esperança de um Reino na história. Em seu lugar, começaram a anelar ardentemente por uma irrupção apocalíptica de Deus na pessoa de um Filho do Homem divino com um Reino completamente transcendental, “além da história” (Dn. 7). O autor do presente livro argumentou, em várias oportunidades, no sentido de que, embora haja considerável diversidade na descrição do Reino no Antigo Testamento, este sempre envolve uma irrupção de Deus na história quando o propósito redentor de Deus será completamente realizado. O Reino é sempre uma esperança terrena, muito embora a terra estará redimida da maldição do mal. Entretanto, a esperança do Antigo Testamento é sempre ética, e não especulativa. Permite que a luz do futuro brilhe no presente de forma a permitir que Israel possa ser confrontado pela história aqui e agora. Por esta razão, há uma aproximação no que tange a um futuro próximo e a outro distante. Deus agirá no futuro próximo para salvar ou julgar Israel, mas também agirá em um futuro indeterminado para trazer a esperança escatológica à sua plena realização. Os profetas não fazem uma distinção nítida entre o futuro imediato e o remoto, pois em ambos poder-se-á observar o trabalho de Deus para com seu povo.

O judaísmo apocalíptico também possuía diversos tipos de esperança. Alguns escritores enfatizaram o aspecto terreno e histórico do Reino (Enoque 1-36; Salmos de Salomão 17-18), ao passo que outros enfatizaram os aspectos mais transcendentais (Enoque 37-71). Entretanto, a ênfase é sempre escatológica. Na verdade, o judaísmo apocalíptico perdeu o sentido da atuação de Deus no presente histórico. Quanto a esse ponto, o apocaliptismo havia se tornado pessimista - não com referência ao ato final de Deus de estabelecer seu Reino, mas com referência à atuação de Deus na história presente para salvar e abençoar seu povo. O judaísmo apocalíptico demonstrava um certo desespero com relação à história, pois entendia que esta estava entregue aos poderes malignos. O povo de Deus somente poderia esperar o sofrimento e a aflição nesta era presente, até o dia em que Deus agisse para estabelecer o seu Reino no século futuro. [15]

A comunidade de Qumran partilhava de uma esperança semelhante concernente ao Reino. Na consumação escatológica, aguardavam que os anjos descessem, juntando-se a eles - “os filhos da luz” - para a luta contra seus inimigos - “os filhos das trevas” - e para conceder vitória aos membros da comunidade de Qumran contra os outros povos, quer judeus que aceitavam os padrões do mundo pagão, quer gentios. [16] A literatura rabínica desenvolveu uma escatologia semelhante, porém utilizou mais a expressão “o reino dos céus”. O Reino de Deus foi considerado como o domínio de Deus - o exercício de sua soberania. [17] Em toda a extensão do curso da história humana, Deus exerceu sua soberania por intermédio de sua Lei. Qualquer indivíduo que se submete à Lei, conseqüentemente sujeita-se ao domínio de Deus. Quando um gentio se volta para o judaísmo e adota a Lei, consequentemente “aceita a injunção da soberania (reino) de Deus sobre si”. [18] A obediência à Lei, portanto, é equivalente à experiência do Reino ou domínio de Deus. A decorrência natural é que o Reino de Deus sobre a terra ficou limitado a Israel. Além do mais, ele não vem aos homens; já se encontra ali, incorporado à Lei; e está disponível a todos aqueles que se submetem a ela.

No final dos tempos, no entanto, Deus manifestará sua soberania no mundo inteiro. Uma oração muito antiga é concluída com esse desejo, assim expresso: “e que Ele [Deus] possa mostrar sua soberania nos dias de sua vida, e nos dias de toda a casa de Israel, sim, com rapidez, e em um tempo que está próximo”.[19] O livro da Ascensão de Moisés contém a seguinte expressão: “E então Seu Reino aparecerá em toda sua criação” (Ascensão de Moisés 10:1). Nesta era presente, o domínio de Deus é limitado àqueles que aceitam a Lei; no final dos tempos, o domínio de Deus aparecerá para subjugar a todos os que resistirem à Sua vontade. A experiência da soberania de Deus no presente é dependente da livre decisão dos homens,[20] mas quando surgir no final dos tempos, “o Ser Celestial levantar-se-á do seu trono real” (Assunção de Moisés 10:3) para punir os ímpios e reunir os justos de Israel em uma ordem redimida e abençoada. [21]

Um outro movimento no judaísmo esteve muito interessado no estabelecimento do Reino de Deus: os zelotes. Nas décadas iniciais do primeiro século d.C., vez por outra uma insurreição contra Roma, promovida pelos zelotes, irrompia. O Novo Testamento fala da revolta de Judas e Teudas (At. 5:36, 37), e uma outra revolta sob o comando de um egípcio cujo nome não é mencionado (At. 21:38). Josefo fala de um outro movimento revolucionário não mencionado no Novo Testamento. Ele não dá nomes a esses revolucionários, mas na última rebelião acontecida no ano 132 d.C., o líder, Bar Kokhba, foi intitulado como o Messias por Akiba, o rabino mais famoso da época.[22] Os zelotes eram judeus radicais, que não se contentavam em esperar calmamente que Deus trouxesse seu Reino, mas desejavam apressar sua vinda por meio da espada.[23] É possível, e até mesmo provável, que toda a série de revoltas contra Roma fosse messiânica, isto é, que elas não tenham sido motivadas pela consecução de objetivos puramente políticos ou nacionalistas, mas, sim, religiosos, para apressar a vinda do Reino de Deus.[24]

De qualquer modo, em toda a extensão do judaísmo, a vinda do Reino de Deus foi aguardada como um ato de Deus - talvez utilizando agentes humanos - para derrotar os inimigos ímpios de Israel e reunir este povo disperso, vitorioso sobre seus inimigos, em sua terra prometida, unicamente sob o domínio de Deus.


Bibliografia: J. BRIGHT, THE KINGDOM OF GOD (1953); S. MOWINCKEL, HE THAT COMETH (1956); G. E. LADD, JESUS AND THE KINGDOM (1964), 41-97; P. D. HANSON, THE DAWN OF APOCALYPTIC (1979).


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Notas

14. Veja G. von Rad, TDNT 1:567-69. Os excelentes livros de Bright tratam quase exclusivamente do Reino de Deus como uma esperança futura.
15. Veja G. E. Ladd, Jesus and the Kingdom, 72-97.
16. Veja o Rolo da Guerra na obra de A. Dupont-Sommer, The Essene Writings from Qumran (1961), 164-97; H. Ringgren, The Faith of Qumran (1963), 152 e ss.
17. G. Dalman, The Words of Jesus (1909), 91-101.
18. Loc. cit.
19. Ibid., 99. Provavelmente no final do primeiro século antes de Cristo.
20. Veja K. G. Kuhn, “Basileus,” TDNT 1:572.
21. No caso desta dupla ênfase veja J. Jeremias, NT Theology (1971), 99.
22. E. Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 a.C. - 135 d.C.), edição revisada (1973), ed. M. Black, G. Vermes, e F. Millar, 1:534-57. Para as cartas escritas de próprio punho que foram recentemente descobertas, veja J. T. Milik, Ten Years of Discovery in the Wilderness of Judaea (1959), 136.
23. E. Schürer, The Jewish People, 80.
24. S. Mowinckel, He That Cometh (1956), 284 e ss.


FONTE: Teologia do Novo Testamento - Ladd, George Eldon.