Manuscritos do Mar Morto

Manuscritos do Mar Morto

ROLOS DO MAR MORTO. Nome popular dado à coleção de material manuscrito pertencente originalmente a uma comunidade religiosa antiga que vivia perto do Mar Morto.

1. Descobertas iniciais
2. Escavações adicionais
3. Datando os rolos
4. Conteúdo dos manuscritos
5. Fragmentos de manuscritos 
6. A colônia de Qumrã
7. A fraternidade de Qumrã
a. Origens
b. Vida comunitária
c. Relação com os essênios
d. Qumrã e o Cristianismo
8. Os rolos e a Bíblia

1. Descobertas Iniciais. A data exata em que o material foi encontrado é incerta, mas acredita-se ter sido no início de 1947. Um pastor de cabras beduíno, ao procurar por animais perdidos, entrou numa das cavernas alta do penhasco de calcário argiloso do Wadi Qumrã, mais ou menos a 1,6 km ao oeste do extremo noroeste do Mar Morto, e cerca de 13 km ao sul de Jericó. Lá dentro encontrou muitos jarros, medindo em tomo de 60cm de altura e 25 cm de largura, contendo rolos de couro enrolados em tecido de linho. Eles foram retirados das cavernas e em seguida contrabandeados para um antiquário de Belém, que comprou uma parte, e o restante foi parar nas mãos do arcebispo do Monastério Ortodoxo Sírio de Jerusalém. Muitos estudiosos examinaram os rolos durante o ano de 1947, e alguns destes desqualificaram os MSS como sendo forjados. Mas o falecido E. L. Sukenik, da Universidade Hebraica de Jerusalém, reconheceu a antiguidade dos rolos e conseguiu comprar três deles. Outros MSS foram levados para a American School o f Oriental Research (Escola Americana de Pesquisas Orientais), onde o diretor, J. C. Trever percebeu a importância dos mesmos e imediatamente os fotografou, e enviou algumas fotos para W. F. Albright, o eminente arqueólogo bíblico. A opinião do último foi que os rolos representavam a descoberta arqueológica mais importante jamais feita de MSS do AT, opinião esta que foi amplamente confirmada em pesquisas posteriores.

Com o tempo ficou comprovado o valor dos rolos, e a guerra entre a Arábia e Israel, em 1948, tomou impossível localizar a caverna original (1Q) e explorá-la cientificamente. Não obstante, isto foi feito em 1949 por G. L. Harding do Jordanian Departament of Antiquities (Departamento Jordaniano de Antiguidades) e R. de Vaux da École Biblique (Escola Bíblica) de Jerusalém, que recuperaram várias centenas de fragmentos de textos bíblicos, não bíblicos e apócrifos, alguns dos quais já eram desconhecidos anteriormente. A caverna havia sido o depósito de uma biblioteca de mais ou menos 200 rolos, e pode ter sido descoberta numa ocasião anterior caso esteja correto o relato de Eusébio de que Orígenes (185-254 a.C.) havia usado uma tradução grega dos Salmos, recuperada de uma caverna perto de Jericó. Esta biblioteca pode ter sido a mesma “pequena casa de livros” encontrada por um pastor de ovelhas perto de Jericó, cerca de 800 d.C., e que foi relatada posteriormente ao patriarca nestoriano Timóteo I. Devido ao conflito palestino foi decidido levar os rolos em posse do arcebispo sírio para os EUA em 1948, onde eles foram publicados por M. Burrows, J. C. Trever e W. H. Brownlee. Eles incluíam um rolo completo da profecia de Isaías (lQIsa), um comentário sobre o livro de Habacuque, (lQpHab) e um documento que Burrows intitulou de “Manual de Disciplina” (1QS), porque ele continha os regulamentos da vida comunitária de Qumrã. Um dos rolos que a princípio pensou-se ser um apocalipse de Lameque, não pôde ser aberto na ocasião, mas ao ser feito em 1956 mostrou ser uma paráfrase em aramaico dos primeiros capítulos do Livro de Gênesis. Ele foi publicado em 1956 sob o título, A Genesis Apocryphon. Os rolos adquiridos por E. L. Sukenik incluíam um rolo fragmentário de Isaías (lQIsb), um Rolo de Guerra (1QM) e quatro porções de uma coleção de Hinos de Ações de Graças ou Hodayoth (1QH). A coleção completa foi publicada em 1954, após a morte de Sukenik, por seu filho Y. Yadin, sob o título de Osar Hammegilloth Haggaenuzoth ou “tesouro dos rolos escondidos”. Os fragmentos recuperados da primeira caverna de Qumrã foram publicados em 1955 por D. Barthélemy e J. T. Milik, sob a designação de Qumran Cave I.

2. Escavações adicionais. Chegando ao fim de 1951 outros novos fragmentos de MSS foram descobertos pelos beduínos em duas cavernas do Wadi Murabba‘at, a cerca de 18 km ao sul de 1Q e 3 km ao oeste do Mar Morto. Investigadores clandestinos anteciparam as escavações oficiais em 1952, mas apesar disto vários MSS bíblicos da variedade textual massorética foram encontrados, incluindo um rolo dos profetas menores, fragmentos de cerâmica com inscrições em grego e hebraico, dois papiros escritos em grego em condições fragmentárias, moedas da Segunda Revolta Judaica (132-135 d.C.) que dataram com precisão a ocupação no período romano, e outros artefatos menos importantes. Fontes importantes para o estudo da Segunda Revolta Judaica contra Roma foram algumas cartas em papiro escritas em hebraico, duas das quais assinadas por Simão Bar-Cocba e endereçadas a um certo Josué ben Galgola, aparentemente o comandante do posto militar no Wadi Murabba‘at. Outra descoberta de MS foi feita em 1952, nas ruínas de um monastério cerca de 13 km ao nordeste de Belém, em um local conhecido como Khirbet Mird. Estes documentos eram de data bem posterior àqueles recuperados em outros lugares, sendo atribuídos ao período entre o 5e e 92 sécs. d.C. Os MSS bíblicos, escritos tanto em grego como em siríaco palestino, eram de origem cristã. O material literário do Wadi Murabba‘at e do Khirbet Mird, embora de interesse e importância arqueológica, não está diretamente relacionado aos rolos e fragmentos de Qumrã. A partir de 1952 sérias tentativas foram realizadas para localizar e explorar outras cavernas no terreno rugoso próximo ao Wadi Qumrã, o resultado foi que no total onze cavernas foram descobertas nas vizinhanças e forneceram uma coleção diversificada de MSS, fragmentos, cerâmicas e coisas do gênero. A Segunda Caverna de Qumrã (2Q), descoberta em 1952, já havia sido saqueada pelos beduínos da tribo Ta‘amireh antes da chegada da missão oficial, e apenas uns poucos fragmentos de MSS muito pequenos foram encontrados no local. A Terceira Caverna (3Q), localizada cerca de 1,6 km ao norte da 1Q, continha 274 fragmentos em hebraico e aramaico, bem como dois rolos de cobre. Estes dois últimos tinham se oxidado e apresentaram grandes dificuldades técnicas para serem desenrolados. No inicio de 1956 os rolos foram especialmente tratados e cortados em tiras no Manchester College o f Technology (Colégio de Tecnologia de Manchester). A perda textual de menos de 5% aconteceu neste processo e, quando traduzidos, os rolos mostraram conter informações sobre as localizações de tesouros escondidos. A Caverna Quatro (4Q), localizada imediatamente ao oeste de Khirbet Qumrã, foi descoberta em 1952 e continha uma grande riqueza de fragmentos de quase todos os livros bíblicos (aparentemente exceto Ester), muitos apócrifos conhecidos e outros não, comentários, textos litúrgicos e outros trabalhos literários. As cavernas de cinco a dez, nas vizinhanças de Qumrã, forneceram material menos importante, mas a Caverna Onze (11Q), descoberta em 1956, continha muitos rolos completos. Por ocasião da realização desta matéria todos os fragmentos recuperados de todos os lugares estavam sendo limpos, classificados e publicados por uma equipe de especialistas internacionais, mas este trabalho levará muitos anos para ser finalizado. Em 1955 foi anunciado que os MSS em poder do monastério sírio haviam sido adquiridos pelo Estado de Israel, e os Rolos do Mar Morto estão agora guardados, juntamente com outros documentos antigos, na Hebrew University (Universidade Hebraica) de Jerusalém, em um edifício com nome de “Santuário do Livro”.

3. Datando os rolos. Quando foram colocados em circulação os relatórios sobre a antiguidade dos rolos e a data antiga atribuída àqueles em posse de Sukenik, muitos se mostraram abertamente incrédulos e quase imediatamente um debate acirrado se levantou sobre a matéria. Infelizmente tal debate foi conduzido principalmente por aqueles que somente sabiam das descobertas em segunda mão e que desconheciam as evidências arqueológicas que as substanciavam. Sukenik datou os rolos que estudara como sendo no máximo de 70 d.C., e se ele estivesse correto isto significava que a evidência textual para o AT em hebraico teria avançado pelo menos em um milênio. Eles seriam, portanto, os MSS em hebraico de longe mais antigos em existência e de inestimável valor para a crítica textual. Muitos dos que se mostraram cépticos estavam cônscios de que fraudes literárias haviam sido impingidas anteriormente sobre estudiosos bíblicos de confiança, principalmente no séc. 19. Quando foi anunciado que a caverna original (1Q) havia sido redescoberta e oficialmente escavada, a matéria apareceu sob uma perspectiva totalmente diferente. O problema da datação envolve basicamente quatro questões, a saber, a data de composição do trabalho literário, a época em que as cópias dos documentos foram feitas, a data a ser atribuída ao tecido nos quais alguns rolos foram envolvidos e, finalmente, a época na qual os jarros foram depositados nas cavernas. A primeira questão é quase impossível de ser respondida de maneira satisfatória em relação à maioria do material bíblico, com exceção do pesharim, ou “Comentários”. Desta forma, no caso do Livro de Isaías, o MS existente mais antigo é agora o lQIs3, tendo sido determinado por Burrows como sendo de 100 a.C., é no máximo 600 anos depois do rascunho de Isaias confiado a seus discípulos (Is 8.16). O comentário de Habacuque apresenta um problema duplo, uma vez que o pesher é obviamente de idade posterior ao próprio livro. Se a porção comentada de lQpHab for datada antes de 100 a.C. este, então, se toma a primeira evidencia externa para o texto do livro canônico. A datação dopesher depende, em parte, da identificação do militante Quitim, com o qual a seita estava preocupada, e que tem sido identificado de várias maneiras como sendo as forças selêucidas de Antíoco IV Epífanes (175-164 d.C.), a força militar de Alexandre Janeu (103-76 a.C.), a ocupação da Palestina pelas forças do período romano particularmente durante a primeira Guerra Judaica (66-70 d.C.), e até mesmo com as cruzadas cristãs do período medieval. A data da composição de 1QS, 1QH e 1QM tem encontrado uma variação tão ampla na opinião dos especialistas quanto à dos documentos bíblicos. Não é possível obter dados quanto à circulação do 1 QH antes da era cristã, mas o documento, ao que parece, é uma cópia de um MS anterior não o autógrafo original. Os rolos de Qumrã, independente de serem cópias ou originais, vieram de um período histórico que começou em cerca de 250 a.C. e terminou com o abandono das cavernas em 68 d.C. Burrows datou 1QS e lQIs“ por volta de 100 a.C. enquanto designou o 1QM, 1QH e lQIsb, juntamente com o Genesis Apocryphon, como sendo do primeiro quarto do 1Q séc. a.C. 

Ele também defendeu que 1 QpHab foi escrito durante o último quarto do 1- séc. a.C., e estas estimativas, baseadas principalmente em evidências paleogeográficas, demonstraram ser bem correlacionáveis com as descobertas arqueológicas subseqüentes. Os fragmentos de cerâmica recuperados de 1Q pertenciam ou ao período helênico e foram datadas como sendo do l 2 séc. a.C. ou ao romano do séc. 32 d.C. Os pedaços de tecido removidos da 1Q consistiam de linho de fabricação local e foram datados pelo método do radiocarbono computadorizado. O método se baseia no fato de que todo organismo vivo contém uma certa proporção do radioativo, carbono-14, que é instável e começa a se desintegrar quando o espécime morre. A meia vida do átomo de carbono radioativo é de 5.500 anos e o cálculo da idade de material orgânico pode ser obtido fazendo a redução para carbono por intermédio de combustão, depois medindo o resíduo de carbono-14 por meio de um contador de radiação de alta sensibilidade. Existe naturalmente uma pequena margem de erro, e atualmente a variação não excede a 30.000 anos. W. F. Libby, de Chicago, que foi o pioneiro deste método de datação, testou o linho de Qumrã e anunciou que ele cessou de absorver carbono-14 em 33 d.C., com uma margem de erro de mais ou menos 200 anos, o que fornece um intervalo completo de 168 a.C. a 233 d.C. A data média obtida assim confirmava a antiguidade dos rolos e precisava apenas de ser corroborada pelas descobertas arqueológicas de Khirbet Qumrã. O tempo exato em que os jarros com seus conteúdos foram colocados nas cavernas de Qumrã por segurança é menos fácil de estabelecer. R. de Vaux afirma que as cavernas funcionaram como um local de armazenagem de emergência do acervo literário da seita e, se assim for, então os jarros podem ter sido depositados em diversas ocasiões, durante os períodos de dificuldades pelos quais passaram os adeptos da seita de Qumrã. As evidências paleogeográficas sugerem que todas as cópias dos rolos da 1Q foram feitos no mais tardar até 70 d.C., e é mais provável que os MSS foram escondidos localmente um pouco antes do fim da existência da comunidade de Qumrã, em 68 d.C.

4. Conteúdo dos manuscritos. O conteúdo dos rolos mais importantes pode ser agora resumido brevemente, começando pelo grande MS de Isaías (lQIs). Este rolo encontra-se surpreendentemente em bom estado de conservação, ele consiste de 54 colunas de manuscrito hebraico claro, em 17 folhas de couro costuradas uma à outra. Mede 7,32 metros de comprimento e cerca de 30 cm de largura. Em média o texto é apresentado em 29 linhas por coluna e disposto em parágrafos e seções claramente marcados. Apesar de ter sido bastante manuseado na antiguidade havia somente dez lacunas no MS e uns doze furos pequenos, o que tomou a restauração do texto relativamente fácil. A participação de diversas mãos no MS é evidente, e erros de escriba foram corrigidos de diversas formas. Nas margens aparecem alguns símbolos singulares que talvez servissem para indicar divisões para a leitura litúrgica da profecia. O número considerável de erros de transcrição no 1QIsa pode ser atribuído ao MS ter sido ditado, mas fora disto o rolo empresta impressionante apoio à tradição do texto massorético. A ortografia do lQIs “exibe certas características fonéticas que são menos proeminentes no TM, e que consiste em parte de uma ortografia fonética contemporânea designada para facilitar a leitura sem mudar a pronúncia tradicional. Esta particularidade é de valor inestimável para os estudiosos, pois permite saber o modo como o hebraico era pronunciado, com respeito aos sons de vogais longas, pouco antes da era cristã, e em mostrar que o hebraico continuou como língua viva após o 2e séc. a.C. O rolo de Sukenik (l QIsb), bastante fragmentado, consiste de uma porção grande e várias porções menores, a maior parte do qual pôde ser decifrado somente pelo uso de fotografia infravermelha. Quando montadas em quatro folhas, as duas menores contendo material dos primeiros capítulos da profecia, deram em média 25 x 15 cm enquanto que as seções maiores, compreendendo o último terço da profecia, eram de 45 x 20 cm. O texto é muito próximo da tradição massorética e usa a velha ortografia comum após o exílio. 

O rolo cuja escrita se apresenta com mais clareza de todos é o comentário de Habacuque (lQpHab), que consistia de duas tiras de pergaminho costuradas e medindo aproximadamente 1,50 m por 18 cm. Como nos outros rolos, as letras se apoiavam em linhas retas suaves e o texto organizado em colunas. A deterioração do couro resultou na perda de várias linhas da parte inferior de cada coluna. Apenas os dois primeiros capítulos do Habacuque canônico sobreviveram no rolo, provavelmente porque o terceiro, um poema, fosse considerado inadequado aos objetivos exegéticos da seita. O comentarista cita trechos curtos de Habacuque e depois os explica escatológica ou alegoricamente em termos da história da fraternidade de Qumrâ. Princípios de interpretação da midrashim judaica, ou exposições, estão presentes no texto, incluindo referências secretas e escatológicas, a organização mecânica das letras na palavra, o intercâmbio de letras semelhantes e a abreviação ou divisão de palavras semelhantes. O comentário não explica o significado da profecia canônica, mas ao invés disso aponta para a existência de certas condições dentro da seita das quais o rolo se originou. As preocupações principais baseavam-se na oposição de um sacerdote mau e do impiedoso Quitim, pois estes dois poderes representavam os oponentes espiritual e temporal dos membros da seita. É desnecessário dizer que a identificação dos dois provocado uma grande discussão contemporânea. O assim chamado Manual de Disciplina, (1QS) ou Regulamentos da Comunidade, foi recuperado em duas seções separadas que, quando ajuntadas, formaram um documento de cerca de 1,80 metros por 24cm. Originalmente o rolo tinha pelo menos 2 metros de comprimento, mas a parte do início não sobreviveu. A escrita é bastante clara e o estilo da caligrafia é semelhante ao do escriba que copiou o lQIsa. O texto consistia de 11 colunas de cerca de 26 linhas em cada, o número preciso de linhas é indeterminado por causa do estado de deterioração do rolo. Esta obra é, de longe, a fonte de informação mais importante sobre a seita religiosa de Qumrã. Ele começa com a declaração das exigências para os que aspiravam “entrar na Aliança”, seguido da forma litúrgica de iniciação. Uma seção do texto discorria sobre a doutrina de Qumrã sobre o homem, seguida por uma lista de regras da comunidade que ocupam cinco colunas. O MS é encerrado com um salmo devocional. Quando Sukenik adquiriu os Hinos de Ações de Graça, eles estavam em quatro partes separadas, uma das quais foi muito difícil de desenrolar. Algumas partes da coleção estavam em avançado estado de deterioração e precisaram ser fotografadas com infravermelho antes de se tomarem legíveis. O documento original consiste de 15 colunas de cerca de 30 cm de altura com até 39 linhas por coluna. O comprimento total, provavelmente, é de 2,30 m. 

O estilo de caligrafia mostra a atividade de dois escribas, e a coleção de hinos soma cerca de vinte. Eles refletem dois tipos distintos de liturgia pré-cristã, a saber, hinos de “ações de graças” começando com um ato de louvor a Deus e composições “abençoadoras” nas quais uma fórmula de bênção inicia o salmo. A coleção mostra muitos pontos de contato com as tradições hebraica e ugarítica e, no que diz respeito às relações pessoais entre Deus e seu adorador, ela se assemelha ao pensamento dos Salmos. Estes escritos poéticos são, provavelmente, as mais originais das expressões espirituais que emergiram de Qumrã. O último dos quatro rolos originalmente adquiridos pelo Metropolitano Sírio desafiou a muitas tentativas de desenrolá-lo, mas finalmente, em 1954, seu conteúdo foi revelado. O estado de avançada deterioração da obra sugere uma exposição prolongada a condições climáticas desfavoráveis, e a reconstrução do texto foi extremamente difícil. Um exame preliminar sugeria que o rolo era o Livro de Lameque, apócrifo há muito tempo perdido, mas no final ficou provado que era uma versão aramaica de vários capítulos de Gênesis, tratados sob a forma de paráfrases e com inserções da midrash nas vidas dos patriarcas. O rolo original provavelmente media 2,75 metros de comprimento por cerca de 30,5 cm de largura. O texto foi escrito em caligrafia clara, mas aparentemente a tinta reagiu com o couro e produziu buracos nele, dando a impressão de que o trabalho fora feito apressadamente e sem capricho. O rolo, algumas vezes conhecido como o Preceito de Guerra (1QM), foi originalmente publicado por Sukenik sob o título “A Guerra dos Filhos da Luz com os Filhos das Trevas”. Estava bem preservado e, quando desenrolado, mediu 2,75 m de comprimento por quase 18 cm de largura. O texto foi escrito em quatro folhas com dezoito colunas, com os restos de outra coluna de uma quinta página completando o rolo. Tratava de maneira escatológica de uma guerra entre os filhos de Levi, Benjamim e Judá, denominados os “filhos da luz” e os inimigos de Israel, dentre os quais gregos, filisteus, moabitas e edomitas, chamados de “filhos das trevas”. O conflito iminente foi introduzido por meio de um prólogo curto, seguido de uma série de instruções detalhadas para a condução da batalha e várias orações para serem recitadas em diferentes ocasiões pelos “filhos da luz”. Amplos debates têm sido feitos em tomo do que precisamente os sectários teriam em mente por ocasião da redação deste material, porém, não foi possível determinar se eles se referiam a uma ação militar em curso ou a um Armagedom apocalíptico. Os três fragmentos de Daniel recuperados na 1Q pertencem a dois rolos diferentes. Dois deles estão relacionados, em termos paleogeográficos, com o grande rolo de Isaías, enquanto que o outro é muito semelhante, em caligrafia, ao de 1QpHab. Dois fragmentos preservam porções do mesmo capítulo de Daniel, enquanto o terceiro inclui o ponto onde começa a seção em aramaico de Daniel. O texto está em idioma essênio, o mesmo dos massoretas, e as principais diferenças têm a ver, como os de lQIsa, com a ortografia das palavras. Os outros fragmentos de Qumrã incluem cerca de 200 fragmentos encontrados na segunda caverna (2Q), dentre os quais se acham porções da Torá, Salmos, Jeremias e Rute. Entretanto, textos não bíblicos parecem predominar, e são principalmente de natureza apocalíptica ou messiânica. Da caverna 3Q, mais ou menos 1,6 km ao norte da 1Q, vieram várias centenas de fragmentos de manuscritos bíblicos e não bíblicos. A descoberta de maior significado desta caverna foi de dois rolos de cobre que escaparam de ser destruídos quando o teto da caverna desabou, na antiguidade. Um dos rolos consiste de duas seções, sendo que originalmente as tiras deveriam estar presas uma a outra, formando uma folha de metal de cerca de 2,4 metros de comprimento e 30,5 cm de largura. 

O estado avançado de oxidação do metal tomou o desenrolar quase impossível, e só em 1956 foi que se decidiu cortar o metal em tiras, processo este que felizmente foi executado com uma perda mínima do texto. Os rolos trazem uma lista de cerca de sessenta esconderijos de tesouros e descrevem suas localizações em diferentes partes da Judéia antiga, alguns dos quais não puderam ser identificados. As inscrições foram rapidamente traçadas no metal e em seguida enrolados de uma forma que demonstra pressa e falta de prática em fazê-lo, sugerindo que o tesouro teria sido escondido e a lista compilada em tempos de emergência, talvez em 68 d.C. Uma estimativa do valor dos itens detalhados no rolo de cobre resultou na alta soma de seis mil talentos, ou cerca de duzentas toneladas de ouro e prata. A posse de um tesouro tão valioso parece fora de contexto para uma seita que tinha na renúncia de bens terrenos e na vida comunal dois de seus mais importantes fatores regulativos, e nenhuma explicação satisfatória para o fato foi ainda encontrada. Afora a natureza histórica deste catálogo, tem-se a grande importância do texto em si, já que foi escrito em dialeto coloquial do séc. I2 d.C. em vez de no estilo literário hebraico padrão. Antes da descoberta dos rolos de cobre as únicas amostras deste dialeto eram alguns tratados religiosos judaicos, dos quais a Mishnah (séc. 2- d.C.) era o mais antigo.

5. Fragmentos de manuscritos. Uma grande quantidade de fragmentos foi recuperada em 1952 em uma outra caverna (4Q), localizada próximo de Khirbet Qumrã. Provavelmente mais de 300 livros foram originalmente guardados nesta caverna, sendo que cerca de um terço era de natureza canônica. No esconderijo foram encontrados fragmentos de todos os livros do AT com a exceção de Ester, junto com composições extra-bíblicas como o Livro de Enoque, o Doeu mento de Damasco, o Testamento deLevi e outras. Uma seção de Números (4QNumb) exibe um tipo de texto hebraico a meio caminho da variação da LXX e Samaritano, enquanto que uma porção de Samuel (4QSama) traz um texto que não é apenas muito semelhante ao da LXX, mas também mais próximo do texto de Samuel empregado pelo cronista do que o TM. Ainda outro fragmento de Samuel (4QSamb) é tido como exibindo um tipo de texto que é superior ao da LXX e da tradição massorética. A quinta caverna continha alguns fragmentos quase totalmente decompostos, incluindo porções de Reis, Lamentações e Deuteronômio, assim como também uma obra escatológica em aramaico com o título de Descrição da Nova Jerusalém, que fora também encontrado em outras cavernas. A caverna 6Q continha muitas centenas de fragmentos de papiro e de couro, incluindo pequenas porções de Gênesis e Levítico escritas em uma grafia páleo-hebraica, seções de Reis e cinco fragmentos de Daniel. Livros não bíblicos estavam representados por alguns escritos apocalípticos e numerosas composições em aramaico. Mais cinco esconderijos foram posteriormente descobertos na área de Qumrã, sendo que a última (11Q), descoberta em 1956, continha diversos rolos em excelente estado de preservação, incluindo dois MSS de Daniel e um livro danificado dos Salmos. Igualmente notável foi a descoberta, nesta mesma caverna, de uma targum (interpretação) aramaica de Jó, provavelmente composta no l2 séc. a.C. Os fragmentos encontrados na área de Murabba‘at, em 1952, vieram quase todos da segunda caverna (2Mu) e consistiam de documentos do séc. 22 d.C. escritos em grego, hebraico e aramaico. Destes, provavelmente o mais importante foi um papiro palimpsesto escrito em uma caligrafia arcaica, que parece ser anterior à escrita do óstraco de Laquis do 6S séc. a.C., e que foi atribuído ao 82 séc. a.C. por J. T. Milík. Ele contém uma pequena lista de nomes masculinos. Fragmentos do Pentateuco e do Livro de Isaías de 2Mu exibem concordâncias minuciosas com o TM e foram datados como sendo do séc. 22 d.C. 

Alguma luz adicional foi lançada sobre o último período com a recuperação de uns poucos papiros hebraicos escritos por Simão Bar-Cocba, o líder da malfadada Segunda Revolução Judaica contra Roma (132-135 d.C.), para suas forças posicionadas na região do Wadi Murabba‘at. Outro material do mesmo período, escrito em latim cursivo, mostra que o posto fortificado em Murabba‘at foi ocupado pelos romanos mais tarde. O fato das cartas de 2Mu terem sido escritas em hebraico constitui evidência adicional de que esta língua sobreviveu até a era cristã como uma língua viva. Em 1953 os arqueólogos belgas encontraram mais fragmentos de MSS no Khirbet Mird, ao norte de Belém, que incluía material árabe, grego, siríaco e cristão-palestino. Todos os documentos recuperados são de data mais recente do que os de Qumrã e de Murabba’at. Em um lugar ainda não identificado até a ocasião desta presente matéria, foi encontrado, em 1952, um fragmento de texto grego dos profetas menores, escrito em couro num belo estilo uncial e contendo porções de Miqueias, Jonas, Naum, Habacuque, Sofonias e Zacarias. Foi datado por Barthélemy como do séc. I2 d.C., e é de grande valor para a crítica textual ao apoiar a tese de que a LXX seria uma testemunha confiável de uma tradição textual mais antiga. Os fragmentos consistem de uma versão que é uma revisão da LXX, e que é, mais provavelmente, o texto que influenciou as versões feitas do original hebraico no séc. 22 d.C. por Aquila, Símaco e Teodósio.

6. A colônia de Qumrã. Durante as escavações oficiais da área de Qumrã, em 1949, os arqueólogos notaram umas ruínas num platô rochoso, cerca de 1,6 km ao sul da caverna 1Q. Após sondagens preliminares a escavação das ruínas ou khirbeh foi efetuada completamente em 1952, revelando a presença de um grande complexo de salas, uma das quais continha bancadas de argamassa quebradas. Havia também uma grande cisterna de água ligada, na antiguidade, por meio de um aqueduto a algum reservatório natural situado mais além na escarpa. De particular importância foi a descoberta de um jarro intacto, idêntico em forma e tamanho com os pedaços encontrados na 1Q, o que estabeleceu definitivamente uma ligação imediata entre os ocupantes das ruínas (conhecidas como Khirbet Qumrã) e os MSS da 1Q. Ficou evidente que a comunidade religiosa havia vivido outrora no local e era responsável pelos documentos depositados nas cavernas das proximidades. Um cemitério foi encontrado junto ao khirbeh contendo esqueletos masculinos e femininos, e isto reforçou a ligação ainda mais. Explorações posteriores no local descobriram todo o complexo da comunidade. No canto noroeste da estrutura principal havia uma torre fortificada, que aparentemente foi reforçada após um terremoto em 31 a.C., quando foi danificada no lado leste e extremidade sudeste. O edifício principal da comunidade, com uma área de cerca de 36 m2, estava localizado ao norte da cozinha e do refeitório. Ao sudoeste ficavam quatro ou cinco salas que poderiam ter servido para estudo ou oração. Uma destas, o scriptorium (lugar de escrever), continha restos de bancadas de argamassa onde, com toda probabilidade, alguns rolos do Qumrã foram copiados. Dois tinteiros do período romano, um feito de cerâmica e o outro de bronze, auxiliaram na determinação da data do depósito com precisão. No canto sudeste do complexo, os escavadores descobriram os restos de uma oficina contendo as ferramentas usadas pelos membros da comunidade. Um forno para cerâmica foi descoberto nas proximidades, indicando que a comunidade era virtualmente auto-suficiente. 

Latrinas, canais e cisternas estavam em considerável evidência no assentamento bem planejado da comunidade. A partir do grande número de cisternas e reservatórios pode-se supor que a seita religiosa dava muita ênfase aos rituais que envolviam cerimônias de purificação. E verdade também que as necessidades físicas de uma comunidade de talvez 500 pessoas requeressem grande provisão de suprimento de água. Pensa-se que a comunidade obtinha suas principais matérias primas como grãos, vegetais e carne de ‘Ain Feshka, um oásis de palmeiras situado cerca de 3 km ao sul do khirbeh, na costa oeste do Mar Morto. Os fragmentos de cerâmica e moedas descobertos durante as escavações ajudaram ainda mais na determinação do elo entre a seita religiosa e os rolos de Qumrã. Os fragmentos de cerâmica pertenciam a três diferentes níveis de ocupação, c. 110-31 a.C., 1-68 d.C. e 66-100 d.C. respectivamente. Durante a terceira fase (1954) um jarro cilíndrico, com a mesma forma e padrão daqueles de 1Q, foi encontrado num depósito ao sul do edifício principal, reforçando a conexão da seita com os depósitos das cavernas. Muitas moedas foram recuperadas no khirbeh, mas nenhuma nas cavernas de Qumrã, indicando que todas as transações monetárias eram feitas somente na colônia. Os depósitos de moedas permitiram a datação exata dos vários níveis de ocupação e indicaram que este período começou no tempo de João Hircano (135-104 a.C.), e continuou sem interrupção até o reinado de Matatias (40-37 a.C.), o último dos asmoneus. Apenas uma moeda do período de Herodes o Grande (37-4 a.C.) foi encontrada, contrastando com uma série pertencente a seu filho, Herodes Arquelau (4 a.C.—6 d.C.). Outros depósitos representavam o período dos procuradores romanos da Judeia, juntamente com vinte e três moedas do reinado de Herodes Agripa I (37-44 d.C.). Algumas moedas vieram do período seguinte a queda de Jerusalém em 70 d.C., enquanto que cerca de uma dúzia do Nível III datavam da Segunda Revolta Judaica.

7. A fraternidade de Qumrã.

a. Origens. O caráter geral da seita de Qumrã tomou-se evidente por meio da descoberta dos MSS, principalmente a partir do conteúdo do Regulamento da Comunidade (1QS), embora nem todos os problemas relacionados à natureza da fraternidade tenham sido resolvidos. A seita consistia de um grupo de sacerdotes e leigos que buscavam uma vida comunal de dedicação exclusiva a Deus. Os mistérios da profecia foram revelados ao fundador, um sacerdote descrito como o Mestre Justo; uma característica importante da vida comunitária era a interpretação das Escrituras em termos de testemunho da seita e do fim dos tempos. O Mestre Justo havia sido enviado por Deus para anunciar a punição que viria sobre Israel. Segundo o comentário de Habacuque, o Mestre Justo sabia mais sobre as implicações escatológicas disto do que o próprio profeta. Embora aparentemente retardado, o fim viria, mas uma remanescente sobreviveria. Este seria a comunidade de Qumrã, que havia agradado a Deus pela sua fidelidade à Torá e sua confiança no Mestre lusto. Esta mensagem geral era totalmente rejeitada pelo Sacerdote Perverso e seus seguidores, cujas preocupações, ao que parece, eram com outras coisas que não a espiritualidade da Torá. As referências ao Sacerdote Perverso eram, evidentemente, direcionadas ao ofício do Sumo Sacerdote em Jerusalém, visto que o mesmo era denominado o “regente de Israel” e portador do “verdadeiro nome”. Embora uma alusão geral ao Sumo Sacerdote fosse clara, parece certo que um conflito específico ocorrera entre o Mestre Justo e o Sumo Sacerdote de Jerusalém em algum ponto do início da história da seita, pois o pesher fala do Sacerdote Perverso perseguindo o Mestre Justo e causando-lhe danos físicos. 

A questão atingiu o clímax no Dia da Expiação, quando o Sacerdote Perverso “destruiu” o Mestre Justo e fez seus seguidores tropeçarem, presumivelmente uma referência à morte do seu líder e a dispersão dos sectários. Entretanto, o próprio Sacerdote Perverso perseguidor foi preso por seus inimigos e foi, juntamente com os “últimos sacerdotes de Jerusalém”, entregue nas mãos destes inimigos. O comentário se referia em termos ainda mais amplos à destruição de toda a nação por agentes valentes e orgulhosos executando a ira divina nos últimos dias, que foram descritos como Quitim. Nos tempos do AT este nome foi usado para fazer referência ao povo de Chipre (Gn 10.4 RSV; Is 23.1,12 ASV; Jr 2.10; Ez 27.6, et al.), e na Apócrifa para designar os gregos (IMac 1.1; 8.5 [trad. macedônios]; mg.). Autores judeus posteriores aplicaram o nome secretamente a qualquer poder vitorioso, independente da época, e esta tradição pode estar refletida no 1QM, onde o Quitim da Assíria foi mencionado. Todavia, o Quitim de lQpHab só pode ser os gregos ou os romanos. Embora os exércitos conquistadores de Alexandre fossem em parte marítimos quanto a origem, os de seus sucessores, os selêucidas e ptolomeus, vieram da Síria e do Egito, não das “terras costeiras do mar”. Além do mais, as forças dos selêucidas e dos ptolomeus não correspondem totalmente em alguns outros aspectos do Quitim como descrito no comentário. Uma identificação mais provável seria com o exército romano, que combina com a descrição de Quitim melhor do que qualquer outro poder imperial anterior. Eles vieram de lugares marítimos distantes, estavam sob o comando de uma “casa culpada”, sacrificavam a seus estandartes e veneravam suas armas de guerra. Esta última forma de culto aparentemente era comum no l2 séc. a.C., quando os romanos consideravam as “águias” como objetos sagrados e faziam oferendas a elas. Josefo registrou este costume como ainda em voga no séc. I2 d.C., pois descreveu como os romanos ergueram seus estandartes perto do portão leste do complexo do Templo e ofereceram sacrifícios a eles antes de destruir o Templo em 70 d.C. Se Quitim puder ser identificado como sendo os romanos, então pode ser que 1QpHab descreva a ocupação da Judeia por Pompeu, em 63 a.C. 

Neste caso, o Sacerdote Perverso pode ter sido Alexandre Janeu ou Aristóbulo II, embora a identificação precisa seja difícil. Precisamente quem seria o Mestre Justo é também incerto, principalmente porque algumas alusões provavelmente se referem a um ofício e não a um indivíduo. Dois pesharim fragmentados também mencionam a luta entre o Mestre Justo e o Sacerdote Perverso. O pesher do Salmo 37 descreve a missão divina do Mestre Justo e sua tarefa de ocupar a Cidade Santa e seu Templo. O texto deste fragmento diz que o Sacerdote Perverso fora enviado para matar o Mestre Justo e para desviar “os justos do caminho”. Em porções do pesher de Naum são mencionados um certo Antíoco e também um homem chamado Demétrio, “rei de Javã”, presumivelmente Demétrio III de Damasco, que ajudaram os fariseus contra seu regente despótico, Alexandre Janeu (103-76 a.C.). E possível que as referências no pesher ao Leão da Ira “enforcando homens vivos” sejam à vingança de Janeu depois da vitória de Demétrio, mas o uso secreto de termos nestes pesharim toma isto incerto. Neste contexto parece que a seita teria sido uma facção religiosa dentro do Judaísmo, originando mais provavelmente nos tempos de Antíoco IV Epífanes (175-163 a.C.), e organizada como um grupo de teologia ortodoxa sob a direção do Mestre Justo no assentamento judeu em vários momentos entre 175 a.C. e 70 d.C. 

b. A vida comunitária. Para este item o Regulamento da Comunidade é um guia de grande valor para se conhecer a organização da seita, que consistia de um grupo de sacerdotes e leigos seguindo uma existência comunal em dedicação a Deus. De acordo com 1QS, aqueles que desejavam de “entrar na aliança” tinha de cumprir certos procedimentos preliminares após os quais era iniciado, numa base experimental, obtendo completa admissão após três anos. Cada membro era obrigado a renovar seu voto de obediência anualmente, quando ele era relembrado das falhas que resultariam na sua expulsão da fraternidade. A quinta coluna do 1QS fornece as regras para o governo da comunidade e, por intermédio desta, fica evidente que a seita era controlada pelos anciãos e sacerdotes com o propósito de se ocupar com os estudos bíblicos e participar num tipo de adoração sacramental. A seita claramente se via como o verdadeiro Israel, esperando o estabelecimento do reino divino na terra. A expectativa do advento messiânico ocupava grande importância no pensamento da fraternidade, parcialmente porque os sectários eram obrigados a viver conforme a Torá até a vinda do profeta e de duas figuras messiânicas designadas como “os ungidos de Arão e Israel”. Em um documento chamado de Obra Zadoquita, um grupo religioso conhecido como os Contratantes de Damasco, que apresentam afinidades impressionantes com a fraternidade de Qumrã, e com o qual tem sido identificada por muitos estudiosos, aparece o termo “o Messias de Arão e Israel” apontando para a expectativa de um único indivíduo. Os conceitos messiânicos da seita foram resumidos em um documento da 4Q contendo uma série de textos bíblicos. Começando com a promessa a Moisés de que um profeta se levantaria (Dt 18.18), ele continua com uma citação dos oráculos de Balaão (Nm 24.15ss.) e termina com a benção de Moisés (Dt 33.8ss.), junto com uma citação de um trabalho pseudepígrafo desconhecido até o momento. O Regulamento da Comunidade descrevia o Messias como que participando de um banquete na Nova Era. Os que estavam presentes foram reunidos em ordem de importância, e o sacerdote que presidia abençoou o pão e o vinho. Depois disto o Messias, que evidentemente ocupava uma posição subordinada, abençoou o alimento também. O banquete tinha claramente uma natureza apocalíptica, mas tinha, ao mesmo tempo, qualidades sacramentais definidas. O ritual poderia ser observado em qualquer tempo por um número variado de participantes diferente daqueles representados, e o senso de expectativa dos eventos que conduziam ao reino divino era um aspecto proeminente da cerimônia. Para os sectários, o reino emergiria após o Quitim de vários países ter sido conquistado e Israel emergisse em triunfo. Seria caracterizado por um sistema teocrático com uma ordem sacrificial e um sacerdócio que tinha muito em comum com o pensamento de Ezequiel. Rituais de purificação ocupavam um amplo lugar nas práticas da seita, e volumes adequados de água eram providenciados para estes propósitos. As implicações espirituais de tais rituais eram enfatizadas, deixando bem claro que apenas o arrependimento verdadeiro e a submissão a Deus determinavam se a pessoa estava pura ou não como resultado dessas cerimônias. A Torá era estudada dia e noite em Qumrâ, e as festas sagradas observadas rigorosamente. Teologicamente, parece que os Contratantes adotavam um ponto de vista dualista sobre o universo, no qual os espíritos da luz e das trevas. Deus e diabo, eram colocados em oposição ética segundo o padrão do Zoroastrismo. A luta entre os dois seria resolvida somente no dia do Juízo Final, um tema elaborado em 1QM na descrição da batalha apocalíptica entre os filhos da luz e filhos das trevas, e para a qual a seita tinha de se preparar. A despeito de sua tendência em direção ao dualismo, os membros enfatizavam a verdade, a justiça, a humildade e a devoção, procurando por intermédio de suas vidas disciplinadas adquirir tais virtudes. 

c. Relação com os essênios. A fraternidade de Qumrã tem sido frequentemente descrita como essênios, mas apesar de semelhanças tais como a vida monástica, trabalho manual, devoção espiritual e outras, existem certas diferenças marcantes entre as duas seitas. Diferente dos Essênios, a seita de Qumrã praticava o casamento, toleravam os sacrifícios de animais, não eram pacifistas e evitavam qualquer contato com o mundo externo. Embora, como esclarecido por Josefo, o termo “essênio” fosse flexível quanto a natureza na antiguidade, não parece adequado na atualidade considerar o grupo de Qumrâ como sendo tipicamente essênio, visto que eles talvez possam estar muito mais próximos da seita de magariam, que habitava em cavernas, do inicio da era cristã. 

d. Qumrã e o Cristianismo. Alguns estudiosos têm tentado ver a fraternidade de Qumrã como uma antecipação distinta do Cristianismo, as áreas mais importantes sendo as do Mestre Justos como Messias e vida organizacional e quase sacramental do grupo. Todavia, os membros da seita nunca consideraram seu fundador como o Messias, embora sua vida monástica tenha poucos paralelos com o início do Cristianismo. Os sacramentos do evangelho têm bases teológicas diferentes daquelas em uso em Qumrã, e traz conceitos de pecado e expiação que eram estranhos ao pensamento da seita. Sugestões de que João Batista e até mesmo Jesus teriam recebido treinamento na colônia são puramente especulativas, pois na realidade existem muitas diferenças sérias entre as teologias e práticas do grupo de Qumrã e as vidas e doutrinas de João Batista e Cristo, tomando qualquer contato sério entre eles improvável. Apesar do contexto comum da revelação divina do AT, dos quais tanto Cristo quanto os sectários fizeram uso, paralelos entre os ensinamentos de Qumrã e as doutrinas de Jesus são quase inteiramente restritos ao quinto capítulo de Mateus. Repercussões de expressões de Qumrã são encontradas no NT nas frases como “filhos da luz”, “vida eterna”, “as obras do Senhor” e “que eles possam ser um”. Tais expressões situam o material do NT firmemente num contexto palestino-judaico do séc. I2 d.C., e toma desnecessária uma data no séc. 22 para 2 Pedro e o quarto evangelho.

8. Os rolos e a Bíblia. Conquanto as descobertas de Qumrã sejam muito valiosas para o período intertestamentário e para os estudos bíblico em geral, elas são particularmente importantes para o texto do AT. Um estudo de vários MSS mostra que, no período imediatamente pré-cristão, havia pelos menos três tipos em existência, um dos quais teria sido o precursor do TM, outro sendo um texto intimamente ligado àquele usado pelos tradutores da LXX, enquanto que o terceiro diferia destes dois. Os fragmentos de Samuel, recuperados na 4Q, mostram que o texto deste livro, que circulou antes da compilação atual existente, era consideravelmente mais longo do que o TM ou o hebraico subjacente da versão LXX, e que ele diferia de ambos em áreas significativas. Este fato deferiu golpe mortal à ideia, até então acalentada em alguns círculos críticos, de um texto hebraico fixo que poderia ser usado para garantir uma base para a análise literária. Talvez mais importante de tudo seja o formidável testemunho que os rolos dão a favor da credibilidade do TM e o cuidado escrupuloso com o qual foi transmitido. Isto também refletiu positivamente sobre os estudos da LXX e do Pentateuco Samaritano, ambos receberam estímulo considerável a partir das descobertas de Qumrã. Está claro agora que nenhum livro do AT pode ser atribuído ao período dos Macabeus, visto que todos os volumes de Qumrã eram cópias, o que faz dos originais anteriores à seita em si, a qual originou-se no período citado. Na verdade, muitos Salmos anteriormente tidos como mais recentes foram finalmente atribuídos ao período persa. A datação do Livro de Daniel como sendo do período Macabeu, longamente defendido por eruditos liberais, tem de ser agora ajustada para uma idade mais antiga, independente da relação dos fragmentos de Daniel na 1Q e os rolos de Isaías e Habacuque ser ou não demonstrável. A 1 QIsa trouxe esclarecimento quanto à composição de Isaías mediante a compreensão que a quebra no fim do capítulo 33 do rolo teve a intenção de mostrar que o livro fora compilado à moda antiga em duas partes iguais. Isto envolvia a composição do trabalho literário em termos de duas metades balanceadas, onde uma complementava e fazia paralelo a outra em áreas importantes, e frequentemente envolvia boa dose de perícia e arte. O conceito de Isaías como uma obra literária dupla é compatível com uma data de composição durante ou um pouco depois da morte do profeta. De qualquer maneira, a profecia original escrita pré-datava em muitos séculos o rolo encontrado em Qumrã, o que, portanto, impede a datação tardia postulada por alguns estudiosos críticos. Embora muito estudo do material de Qumrã ainda precise ser efetuado, fica bastante claro que os MSS não apresentam ameaça à fé cristã como foi dito, quando as primeiras descobertas foram publicadas. Eles confirmaram a maior parte do que se conhecia previamente sobre as Escrituras, porém, demonstraram também a necessidade de revisão radical de algumas teorias acalentadas por alguns estudiosos. Não menos é o benefício do estímulo para reconstruir o texto do AT pré-cristão o mais preciso possível.


Veja também: Rolos do Mar Morto

BIBLIOGRAFIA. M. Burrows, The Dead Sea Scrolls (1955). J. M. Allegro, The Dead Sea Scrolls (1956). F. F. Bruce, Second Thoughts on the Dead Sea Scrolls (1956). T. H. Gaster, The Scriptures of the Dead Sea Sect (1957). J. T. Milik, Ten Years o f Discovery in the Wilderness of Judaea (1959). J. M. Allegro, The Treasure of the Copper Scrolls (1960). R. K. Harrison, The Dead Sea Scrolls (1961). F. M. Cross, The Ancient Library of Qumran (1961). G. Vermes, The Dead Sea Scrolls in English (1962). 


R. K. Harrison