Introdução Literária à Epístola de Tiago

introdução literária a epístola de tiagoA CARTA DE TIAGO

1. Conteúdo

Essa carta está entre os escritos polêmicos do NT. O seu conteúdo, que trata do agir dos cristãos, parece estar em contradição com as cartas do apóstolo Paulo, nas quais a necessidade da fé é enfatizada (Gálatas e Romanos). A pergunta é se a carta de Tiago é uma recaída no legalismo judaico ou uma tentativa de corrigir a interpretação errônea das cartas de Paulo. A questão merece atenção e esclarecimento, já que até Martinho Lutero, em virtude dessa problemática, a colocou juntamente com Judas no final das cartas do NT.

2. Divisão, versículos-chave, afirmações-chave

A carta não tem uma estrutura reconhecível. Os temas tratados estão lado a lado sem ligações intencionais.

Tornai-vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Tiago 1.22

A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo. Tiago 1.27

Assim também a fé, se não tiver obras, por si só está morta. Tiago 2.17

Portanto, aquele que sabe que deve fazer o bem e não o faz, nisso está pecando. Tiago 4.17

Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo. Tiago 5.16b

3. Gênero literário

Nesse escrito destacam-se alguns elementos. Ele tem um cabeçalho mas não tem final. A indicação dos receptores “às doze tribos que se encontram na Dispersão” pode ter vários sentidos. Poderia ser uma carta a judeus; falta-lhe, no entanto, toda e qualquer tentativa de levar o evangelho de Jesus Cristo a eles. Poderiam ser judeus na Diáspora; a favor disso está o fato de que Tiago era o líder do cristianismo judaico.
1 Os destinatários poderiam ser também cristãos-gentios; seriam então chamados de “verdadeiro Israel”, segundo Gálatas 6.162, o que, no entanto, seria improvável em um escrito do irmão do Senhor, Tiago.

Apesar de tão relacionada com a vida cotidiana dos cristãos, a carta não deixa transparecer uma situação específica de igreja local.

Por esses motivos, vale perguntar se aqui se trata de uma carta de fato. Certamente é mais adequado falarmos de uma epístola, ou seja, de um ensaio literário em forma de carta. Nesse caso, Tiago é um escrito didático com exortações para os seus leitores. Conhecemos esse tipo de escritos no judaísmo
3 e no helenismo.4
A suposição de que Tiago fosse um escrito judaico superficial cristianizado. Isso evidentemente não é verdade, se observarmos a relação próxima entre os seus ensinos e a vida, e principalmente a proclamação de Jesus (1.6 cf. Mc 11.23; 1.5,7 cf. Mt 7.7ss; 1.22 cf. Mt 7.24ss; 4.12 cf. Mt 7.1).

Nessa carta tem importância especial também a posição tomada a uma interpretação errônea da teologia do apóstolo Paulo (2.14-26). É difícil entender esse trecho sem supormos a pregação anterior do evangelho por Paulo no sentido de Romanos 4. Por isso, a minha conclusão é de que a carta de Tiago é uma epístola que traz a nós um ensino didático-exortatório.

4. Ênfases teológicas

A carta de Tiago produziu opiniões conflitantes quanto à sua interpretação ao longo da história.

Martinho Lutero escreve: “Darum ist sanct Jacobs Epistel eyn rechte stroern Epistel gegen sie, denn sie doch keyn Euangelisch art an yhr hat.” (Por isso a epístola de São Tiago é uma verdadeira epístola de palha, pois não é caracteristicamente evangélica.”
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Ele aponta as seguintes razões: Tiago ensina, em oposição a Paulo, a justificação pelas obras. Lutera fundamenta isso com a interpretação que Tiago dá a Gênesis 15. Na carta inteira não existe nem mesmo menção da fé na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Tiago faz uma mistura desordenada dos seus assuntos; tentou combater aqueles que se baseavam na fé sem obras, mas não estava à altura dessa discussão. Por essas razões, a conclusão de Lutero é que esse não é um escrito apostólico, porque não promove a causa de Cristo.

Opinião oposta tem o erudito católico F. Mussner: “Para Tiago não há milhares de ‘mas’ ou ‘se’, mas unicamente o desafio para o serviço, o perdão, a paciência, para a orientação ‘escatológica’ de toda a vida. Corresponde, portanto, ao ensino de Jesus, como nos foi transmitida sobretudo no sermão do monte. Dar ouvidos a Tiago significa, pois, dar ouvidos a Jesus! Os dois estão preocupados com a prática da Palavra! Por isso é exatamente a carta de Tiago que pertence àqueles escritos do NT que ensinam e promovem de uma forma especial a causa de Cristo.”
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Mussner fundamenta a sua posição nos paralelos evidentes entre a carta de Tiago e o evangelho de Mateus. Segundo ele, em Tiago encontramos o extrato mais antigo da proclamação de Jesus, sobretudo no sermão do monte. Além disso, o ensino de Jesus é também, em grande parte, orientação ética. Todo aquele que defende as exigências éticas de Jesus, está promovendo a causa de Cristo.

Qual dessas posições tão diferentes podemos seguir? O que é comprovado e o que é observação parcial? Martinho Lutero usou na sua avaliação de Tiago a medida-padrão da justificação pela fé. Isso era compreensível em virtude da sua oposição frontal ao ensino da justificação pelas obras da Igreja Católica Romana de seu tempo. Por essa razão, Paulo precisava ser colocado no centro. Os evangelhos sinópticos já não eram tão importantes. Entretanto, se alguém deixa de lado a proclamação de Jesus e tenta interpretar Paulo, está abrindo caminho para a interpretação errônea dos escritos de Paulo. Em relação a isso, A. Schlatter observou corretamente que o ensino da justificação pela fé do apóstolo Paulo tem como objetivo a vida santificada.7

Mesmo assim não podemos afirmar simplesmente que Paulo e Tiago se complementam. Isso diminuiria a contraposição que aparece sobretudo na interpretação divergente de Gênesis 15 em Romanos 4 e Tiago 2.14ss. Paulo e Tiago estão combatendo em frentes diferentes. Paulo rejeita a esperança judaica da salvação por meio da obediência à lei, que Tiago nunca defendeu. Tiago rejeita a interpretação falsa do evangelho de Paulo, a qual diz que a fé é suficiente e dispensa a ação como conseqüência do amor, algo que Paulo nunca defendeu.

Com base no relato de Atos dos Apóstolos e na carta aos Gálatas sabemos que Paulo e Tiago discutiram sobre os seus diferentes pontos de partida e objetivos e chegaram a um consenso. Apesar de ênfases teológicas diferentes, mantiveram o respeito um pelo outro.

A igreja de Jesus Cristo precisa dessas duas vozes do cânon do NT, para que na formulação e compreensão da sua fé não perca o equilíbrio e se desvie do caminho. Nesse sentido a carta de Tiago é uma tomada de posição imprescindível ao equilíbrio do NT.

5. Unidade

Trata-se de um escrito uniforme, que em todas as suas partes deixa transparecer a mão de um único autor.

6. Autor

Nas considerações até aqui dissemos que Tiago, irmão de Jesus, foi o autor dessa carta. Mas isso necessita de fundamentação.

No cabeçalho Tiago se apresenta como escravo de Deus e do Senhor Jesus Cristo. De quem se trata?

No NT temos referência a cinco homens com esse nome:

Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João (Mc 1.19).
Tiago, filho de Alfeu (Mc 3.18).
Tiago, irmão de Jesus, filho de José e de Maria (Mc 6.3).
Tiago, o menor (Mc 15.40).
Tiago, pai do apóstolo Judas (Lc 6.16).

Desses cinco, só Tiago o irmão de Jesus pode ser o autor desse escrito, pois o apóstolo Tiago, filho de Zebedeu, morreu já em 44 d.C. como mártir. Naquela época as igrejas ainda não tinham se desenvolvido ao ponto de necessitarem dessa carta. Os outros homens têm pouca expressão para terem escrito a carta. A carta pressupõe uma autoridade reconhecida. Por essa razão, os eruditos do NT não contestam o fato de que a carta se apresenta como escrito de Tiago, irmão de Jesus. O que é debatido é, se ela é autêntica ou se é um pseudepígrafo.

Que argumentos são apresentados contra a autenticidade?

Argumenta-se que esse livro teria sido redigido na linguagem formal do helenismo. O irmão de Jesus, Tiago, no entanto, teria sido da Palestina e por isso teria sido improvável que ele tivesse conseguido se expressar nessa linguagem. Além disso, Tiago, irmão de Jesus, teria sido um modelo na obediência à lei. Ele teria sido fiel à observância das leis cerimoniais e cúlticas e teria exigido isso dos cristãos-judeus (cf. At 21.18-26). Mas isso não aparece nessa carta; em vez disso ela fala da “lei da liberdade” (1.25), o que seria impossível sair da boca de Tiago.

Se o autor era de fato irmão de Jesus, por que não fez nenhuma menção disso? A polêmica contra a interpretação incorreta da teologia de Paulo pressuporia um período entre o seu ministério e a carta. Mas Tiago, o irmão de Jesus, teria morrido como mártir já em 62 d.C.

E finalmente, argumenta-se que essa epístola só foi aceita como obra do irmão de Jesus — portanto, como obra apostólica —, lentamente e após muita oposição. Que força têm esses argumentos?

Sobre as habilidades lingüísticas do irmão de Jesus não podemos fazer afirmação alguma.
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Em que trechos do NT se afirma que Tiago dava importância à observância das leis rituais e cúlticas? A suposta evidência de Atos 21 mostra muito mais que Tiago levou em consideração as reações judaicas que acompanhavam o ministério de Paulo. O fato de a epístola omitir a relação entre o autor e Jesus não pode ser usado como evidência contra a autoria de Tiago, irmão de Jesus, pois fundamentar conclusões sobre o silêncio (argumentum e silentio) sempre é questionável.

Mais peso têm as considerações sobre Tiago 2.14ss. A polêmica aí apresentada necessita de uma análise mais profunda. Há vários pontos a favor da idéia de que Tiago 2.14ss pressupõe a interpretação de Gênesis 15 feita por Paulo em Romanos 4. Também a história do cânon e a oposição longa à carta de Tiago precisam ser levados a sério. Não seria possível, no entanto, que a posição da carta contra a interpretação incorreta da teologia de Paulo pudesse ter sido vista como “antipaulinismo” e por isso ter tornado a carta suspeita?

Levando em consideração todos os argumentos, parto do ponto de que Tiago, o irmão de Jesus, foi o autor da carta. Demonstração irrefutável é impossível com base no material disponível.

7. Destinatários

Se a informação no cabeçalho é literal, os receptores foram os cristãos-judeus da Diáspora. Nesse caso são advertidos por Tiago, o respeitado irmão de Jesus, contra uma interpretação incorreta do evangelho proclamado por Paulo.

Há estudiosos que consideram improvável que cristãos-judeus, que se fundamentavam em Tiago como sua autoridade, pudessem ficar inseguros diante da proclamação de Paulo. Assim mesmo, eram críticos em relação a ele. Nesse caso a outra solução seria possível, ou seja, que essa carta didática foi escrita a todos os cristãos do império romano. As informações no cabeçalho deveriam então ser entendidas de forma expandida: as doze tribos na Diáspora seriam toda a igreja de Jesus Cristo em todos os lugares.

8. Local e data

Não temos referências concretas quanto ao local de redação da carta.

Os exegetas de Tiago sugerem três épocas diferentes para o surgimento da carta: a) no final dos anos 40, antes do assim chamado concílio dos apóstolos; b) em torno do ano 60 e c) no final do primeiro século.

J. A. T. Robinson
9 defende a datação mais antiga, ao final da década de 40. Na sua opinião, a carta de Tiago é o escrito mais antigo do NT. Ainda segundo ele, Tiago, o irmão de Jesus, somente teria ouvido acerca da proclamação do evangelho por Paulo, mas não teria conhecido a Paulo de perto. Com base nos rumores que ouvira, teria escrito uma carta de exortação aos cristãos-judeus do império romano. Com isso estava fortalecendo a mensagem de Jesus. No concílio dos apóstolos, Paulo e Tiago teriam esclarecido as suas diferenças e tomado as medidas para o consenso. Isso não teria evitado, no entanto, o uso da carta contra Paulo. Com base nisso, Paulo teria achado necessário tomar posição contra esse mau uso na Carta aos Gálatas e aos Romanos. Nisso teria também se referido à interpretação de Gênesis 15 e a teria acentuado da sua maneira em Romanos 4.

O argumento principal de Robinson é o seguinte: a missão aos gentios no início não era problema para ninguém, até que chegaram “alguns da parte de Tiago” (Gl 2.12), que exigiam a circuncisão e, dessa forma, causaram o debate do concílio dos apóstolos.
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Por mais esclarecedora que essa versão pareça, ela não concorda de forma alguma com os textos que temos à disposição. Pois, de acordo com Gálatas 2, surgem “alguns da parte de Tiago” depois do concílio apostólico. Todos os conflitos nas igrejas da Galácia só ocorrem depois disso. Por essa razão a datação antiga não pode ser sustentada.

Damos uma avaliação diferente à posição de F. Mussner.
11 Ele defende a autoria de Tiago, irmão de Jesus, e data a epístola em torno do ano 60. Paulo teria sido mal interpretado já bem cedo no seu ministério, como mostram as Cartas aos Coríntios. Por isso Tiago não teria usado as cartas de Paulo para reagir contra o mal-entendido. No entanto, a datação antes do ano 70 seria necessária porque depois disso já não houve influência significativa do cristianismo judaico. Quem, portanto, entender que os destinatários estão entre os cristãos-judeus da Diáspora, precisa datar a epístola no ano de 60, acha Mussner.

W. G. Kümmel
12 entendeu as informações sobre os receptores como figura de linguagem indicando os cristãos-gentios. Além disso, ele questiona a autoria de Tiago, irmão do Senhor, pelas razões mencionadas acima. Por isso ele crê que a epístola de Tiago é um escrito pseudepígrafo do final do primeiro século.

Das três tentativas de datação apresentadas, a de F. Mussner parece a mais bem fundamentada; portanto, a mais provável.


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Notas
1. Pensam assim D. A. Carson & D. J. Moo & L. Morris, Introduction, p. 414s; D. Guthrie, Introduction, p. 759-761; F. Mussner, Der Jakobusbrief (A carta de Tiago), p. 11s.
2. Pensam assim W. G. Kümmel, Einleitung, p. 359; A. Wikenhauser & J. Schmidt, Einleitung, p. 573.
3. Sabedoria, Tobias, Testamento dos 12 patriarcas.
4. Diatribe cínico-estóica.
5. M. Luther, Vorrede zu den Schriften des NT (Prólogos aos escritos do NT), Septemberbibel, 1522.
6. F. Mussner, Der Jakobusbrief (A carta de Tiago), p. 52s.
7. A. Schlatter a respeito da exegese de Rm 1.17 in Gottes Gerechtigkeit (A justiça de Deus), p. 37-39.
8. F. Mussner, Der Jakobusbrief, p. 8.
9. J. A. T. Robinson, Wann entstand das NT?, p. 144-148.
10. Para a datação antiga cf. D. A. Carson & D. J. Moo & L. Morris, Introduction, p. 414 (sem restrições); D. Guthrie, Introduction, p. 761-764 (com restrições).
11. F. Mussner, Der Jakobusbrief, p. 19-21.
12. W. G. Kümmel, Einleitung, p. 365.