Comentário de J.W Scott: Gálatas 1:1-24

comentário bíblico da carta aos gálatas
I. HISTÓRIA E APOLOGÉTICA Gl 1.1-2.21

I.a Saudação inicial (Gl 1.1-5)

A saudação tem início com uma asseveração enfática sobre a autoridade apostólica de Paulo, e é vazada em palavras tais que apresenta uma afirmação sucinta da verdade central do Cristianismo, a morte expiatória de Cristo. Assim, essa verdade fundamental, da qual a epístola tanto tem a dizer, nos é exibida desde o princípio.

Não da parte de homens, nem por intermédio de homem algum (1); isto é, não da parte de homens (como fonte última), nem por intermédio de homem algum (como o canal). Cf. Gl 1.12. Se Gálatas foi a primeira epístola de Paulo, pode ser também o primeiro documento escrito do Novo Testamento; e, nesse caso, torna-se ainda mais digno de nota o fato que, em seus versículos inicias, Jesus, o Senhor ressurrecto, é posto no lado divino da realidade, em contraposição com os homens e paralelamente a Deus, como fonte de graça e paz. Graça... e paz (3); o primeiro termo indica o favor gratuito, desmerecido, da parte de Deus para com os homens pecaminosos; o último indica seu fruto e realização na alma crente. Cristo, em obediência à eterna e soberana vontade de nosso... Pai, gratuitamente se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste (para fora de) mundo perverso (ou época presente, com todos os seus males, uma tradução que exibe a ênfase sugerida pela ordem das palavras no grego). Esses "males" são claramente descritos em Ef 2.1-3; ver anotações ali. Como a Sua morte efetuou nossa salvação será explicado mais plenamente adiante. Voltar as costas para a cruz de Cristo, a única esperança do pecador, é considerado o cúmulo da insensatez. Os Gálatas estavam fazendo justamente isso (cf. Gl 2.21-5.4). A glória (5); isto é, a glória que pertence pre-eminentemente a Deus: Deus é "o Deus da glória" (At 7.2). A grande salvação operada por Cristo faz com que essa glória brilhe resplendentemente. Cf. Fp 2.11; Ef 3.21.

I.b O único Evangelho (Gl 1.6-10)

É notável o fato que Paulo, contrariamente a outras epístolas suas, não inicia esta louvando seus leitores; mas atira-se do imediato à tarefa de condenar os Gálatas por tão depressa estarem abandonando o Evangelho da graça de Deus, preferindo algo que não é evangelho de forma alguma. Ele condena severamente certos mestres, os iniciadores de todo o engano os quais estavam perturbando a paz das igrejas da Galácia e corrompendo e pervertendo o Evangelho de Cristo. Mui enfaticamente o apóstolo declara que existe um só Evangelho. A lealdade a Cristo o constrange a usar linguagem extremamente franca.

Estejais passando tão depressa (6); "trocando rapidamente" (Moff.). O processo tinha prosseguimento mesmo enquanto Paulo estava escrevendo. O verbo é usado para indicar migrações de um lugar para outro (Hb 11.5), bem como para alteração na religião e na moral (1Rs 21.25, LXX). Na graça (6). A chamada de Deus opera no âmbito da graça, e não no círculo das obras ou das observância cerimoniais. Outro evangelho; o qual não é outro (6-7). Duas palavras gregas diferentes são aqui traduzidas como "outro"; a primeira significa um evangelho de espécie diferente (em grego, heteron), e a segunda significa outro numericamente (em grego, allo). O chamado evangelho, para o qual os gálatas se estavam voltando de fato não era evangelho, pois existe um único Evangelho. Perturbam (7). O verbo ocorre frequentemente no Novo Testamento com o sentido de "perturbar mentalmente" (Mt 2.3; Jo 14.1; At 15.24).

Perverter (7); "virar ao contrário, alterar para o oposto". Ainda que nós... pregue... se alguém vos prega (8-9); isto é, "se alguém vier a pregar" (subjuntivo) - uma suposição quase inconcebível; "se alguém está pregando" (indicativo) -maravilha das maravilhas, está acontecendo, e tem prosseguimento. Seja anátema (8-9). Quanto à linguagem extremamente severa de Paulo, há alguns comentários mordazes nas anotações da obra de James Denney, The Death of Christ, capítulo III. Tão violenta condenação desperta nossa curiosidade; e nos faz desejar muito saber exatamente qual era o falso ensino que sacudiu tão profundamente o apóstolo.

O vers. 10 é parentético, fazendo alusão a alguma sugestão de seus oponentes que afirmavam que o apóstolo procurava conquistar o favor dos homens. Parece que o significado é: "Pois estou agora (em declarações como estas) buscando o favor dos homens, ou o de Deus? Se alguém alguma vez disse tal coisa sobre mim (a saber, que eu busco o favor dos homens), poderá dizê-lo novamente agora? O que quer que os homens pensem de mim, desejo somente agradar a Cristo, de Quem sou escravo, e ser leal ao Seu evangelho, seja qual for o custo".

I.c O Evangelho de Paulo não derivado dos homens, mas de Deus (Gl 1.11-24)

O Evangelho que Paulo pregava lhe foi dado por revelação especial (11-12). Sua educação anterior jamais poderia tê-lo conduzido a tal Evangelho (13-14). Deus lhe revelou o Seu Filho e, quando isso sucedeu, ele não consultou outros seres humanos, mas partiu para a Arábia para comunhão exclusiva com Deus (15-17). Quando, finalmente, ele visitou Jerusalém pela primeira vez desde a sua conversão, dois ou três anos após esse acontecimento, seu contacto com os que já eram apóstolos desde antes dele, não foi nem íntimo nem prolongado, e partiu de Jerusalém sem ao menos ter ficado conhecido pessoalmente pela grande maioria dos crentes.

Não é segundo o homem (11). Seu Evangelho não era da espécie de ensino que o coração do homem pudesse porventura imaginar. Nem a doação original (12), nem as instruções detalhadas posteriores sobre o significado daquela, eram segundo o homem. Revelação (12). Essa palavra significa "desvendamento". Em vista do vers. 16, parece provável que o sentido seja "um desvendamento de Jesus Cristo". O véu que oculto Cristo da visão dos mortais, foi tirado para um lado. Meu proceder (13); isto é, conduta, comportamento, conforme aparece freqüentemente no Novo Testamento (cf. Ef 4.22; 1Pe 1.15,18; 1Pe 2.12; 1Pe 3.1-2). Judaísmo (13). Aqui é contrastado com a igreja de Deus. Sobremaneira (13). Essa forte expressão ocorre também em Rm 7.13; 1Co 12.31; 2Co 1.8. Devastava (13); o mesmo verbo grego ocorre no vers. 23 e em At 9.21 ("exterminava"), referindo-se às atividades perseguidoras de Saulo. Os verbos perseguia e devastava estão no tempo verbal imperfeito, o que em grego indica um curso de ação que prosseguiu até a sua conversão. A muitos da minha idade (14); seus jovens contemporâneos na escola de Gamaliel, entre os quais ele era um líder notável e herói (At 7.58). De meus pais (14). Os pais de Paulo eram fariseus estritos (Fp 3.5), e todas as influências que foram exercidas pelo seu lar sobre ele tornavam sua conversão ao Cristianismo extremamente improvável.

Me separou (15). Paulo quer dizer que, antes de seu nascimento, ele fora separado por Deus com um propósito especial, à semelhança de Jeremias (Jr 1.5); cf. Rm 1.1. É digno de nota como, palavra após palavra, salienta o fato que sua conversão foi obra exclusiva de Deus; pois diz ele: Aprouve a Deus, separou, chamou, sua graça. Revelar seu Filho em mim (16). Quando o véu foi tirado para o lado (12), Paulo viu que Cristo era o Filho de Deus, assentado à direita do poder, decisivamente comprovado ser tal por meio de Sua ressurreição (Rm 1.4). Isso foi o raiar da manhã em seu coração (2Co 4.6). Carne e sangue (16); cf. as palavras de nosso Senhor a Pedro (Mt 16.17). Apóstolos antes de mim (17). Paulo era apóstolo, possuindo absolutamente a mesma autoridade que os discípulos originais; ele vira o Senhor ressurrecto (1Co 9.1; 1Co 15.8).

Arábia (17); provavelmente alguma porção dos desertos árabes, dentro de fácil acesso a partir de Damasco. Que ele foi até a península do Sinai, conforme alguns têm suposto, é realmente extremamente duvidoso. Seu desejo, é de supor-se, era de estar sozinho com Deus, para meditar e pensar. Não há menção dessa viagem à "Arábia" em At 9. Podemos conjeturar que Paulo pregou durante "certos dias" em Damasco (At 9.19-22), foi para a Arábia, e então regressou a Damasco, entrando nos "muitos dias" referidos em At 9.23, sendo que esses dias formaram uma grande parte dos "três anos" mencionados no versículo seguinte aqui. Decorridos três anos (18); quase certamente, três anos após a sua conversão, pois dessa data em diante é que Paulo calculava qualquer coisa digna de consideração em sua vida. Para avistar-me com Cefas (18). Há traduções que dizem: "para tornar-me conhecido de Cefas"; no dizer de Beet, "um propósito muito diferente de desejar obter sanção apostólica para a sua obra". Tiago, o irmão do Senhor (19). Assim descrito para ser distinguido de Tiago, filho de Zebedeu, que na ocasião ainda estava vivo. Se esse Tiago é aqui chamado de apóstolo, é um ponto mudo. Talvez assim tenha sido, no sentido mais lato em que essa palavra é algumas vezes empregada no Novo Testamento, como quando, por exemplo, foi empregada para Barnabé (At 14.4,14). Tiago não era um dos discípulos originais de Jesus (Jo 7.5), mas aqui ele aparece em íntima associação com os apóstolos, em Jerusalém. O Cristo ressurrecto apareceu para ele (1Co 15.7), e esse aparecimento, com toda a probabilidade, produziu a sua conversão. Não há razão válida que nos impeça de acreditar que Tiago tenha sido filho de José e Maria. (Quanto a esse problema inteiro examinar o livro do dr. William Patrick, James, the Lord’s Brother, bem como a elaborada dissertação no Comentário de Eadie). Diante de Deus testifico que não minto (20). Os oponentes de Paulo, sem dúvida alguma, haviam torcido o propósito da visita de Paulo: isso explica a forte linguagem que ele emprega aqui. Síria... Cilícia (21), são províncias vizinhas. Ficavam bem longe de Jerusalém, pelo que durante muito tempo Paulo era desconhecido para as igrejas Cristãs de Jerusalém e das circunvizinhanças (22). Que Paulo pregou em sua província nativa, como também na Síria, podemos deduzir da menção sobre as igrejas da Síria e da Cilícia, em At 15.41. Ouviam somente dizer (23); mais literalmente, "estavam apenas ouvindo". Glorificavam a Deus a meu respeito (24). Paulo já estava começando a ser reconhecido como exemplo típico do poder remidor de Cristo (1Tm 1.16).